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Apelido Patego | Fernando Mora Ramos

2 Julho, 2024

O riso é hoje negócio de “humor” — conformação de um tipo engrenado de piada aos desígnios de uma plateia cuja expectativa é rir quantidades garantidas por serão. Esse “humor” é mercado, vende-se na “graça” a metro e pesa-se à unidade, o “humorista” vive de um tipo de “transgressão” fruído por fãs — montado na hora, tem agenda: a política local, os casos celebrizados, os temas “fracturantes”. A sua estratégia é publicitária, o escândalo é a medida do sucesso.
O cómico é tão abrangente quanto o real, inscrito no dia-a-dia não depende da “agenda”, outra matriz o gera: a contrafação crítica de comportamentos visa a sociedade num aspecto particular, por exemplo, a mania das grandezas — o desfasamento entre ser pelintra e pavonear-se ou outras faltas de sentido do real. Aristófanes coloca Sócrates nas nuvens para gozar o filósofo, Vicente põe o escudeiro pelintra a comer amores, Pergopolinices antecipa a coragem apenas verbal do Capitão da Dell’arte na crítica do militar glorioso.
Molière cria tipos que retratam o humano revelando-lhe as intenções ocultas e expondo o ridículo que os “mata”: O Burguês fidalgo, As preciosas ridículas, Tartufo, criatura cuja hipocrisia desnuda.
O cómico no teatro é antropológico, vem da humanidade do homem (da sua desumanidade), o universo social é o seu terroir. Contém uma universalidade de situações, o que é motivo de riso por ser cómico socialmente, riso crítico. Contrafaz os comportamentos dos humanos entre si para devolver aos espectadores, pela deformação cómica — escola, estrutura e estilos —, uma imagem nua — a criatura mais séria fará rir, todo o excesso é uma doença comum. Ninguém escapa ao cómico, ao desencontro entre o que se é e o que se parece, o que se finge para se parecer sem o ser — exibir um estatuto não significa pertencer-lhe e pertencer-lhe não significa mais que exibir os traços reconhecíveis de um comportamento.
O cómico é sociológico na génese. O clássico mostra comportamentos das criaturas em sociedade: a arrogância, o medo, a pose, a falsa coragem, etc., são matéria-prima. É uma arma, faz cair impérios. Hoje em dia, no entanto, a ambivalência do cómico, o duplo sentido, a ironia, o sarcasmo, são rebaixados para uma literalidade que os trai, a massa come conteúdos unívocos em que se reconhece fã. Entretanto uma plateia de teatro é um microcosmo não massivo, cada um lê por si e uma inteligência comum dinamiza o que cada um aprofunda.
O cómico começa a estruturar-se em Aristófanes, Plauto, na farsa medieval, em Gil Vicente. Em Aristófanes é política: a Paz é uma comédia pela Paz. Molière é um dos grandes expoentes universais do cómico, o seu Tartufo um manifesto contra a beatice fundamentalista hipócrita.
Qual a diferença específica do cómico anterior à indústria? É que no cómico profundo a existência de uma dimensão trágica é-lhe interior e a procura unilateral de um resultado garantido não é absoluta, a tentativa é o princípio, não há êxitos mecânicos: muitas peças de Molière não se aguentavam muito tempo.
Não é possível isolar na realidade apenas os aspectos risíveis, não existem em estado puro. A realidade é um complexo contraditório de factores constituintes.
Neste Jorge Patego a dimensão cómica — Patego é um “caso de estudo” — assenta na cisão identitária do protagonista: entre o estatuto querido e a impossibilidade de lhe aceder por via da “fazenda” — o que constata já depois de casado, a esposa não é a que comprou, a norma dela não é a dele. O lavrador rico não entende que o dinheiro não aplane a beldade arisca, comprou um objecto. Não se compra tudo? Na trama de Jorge Patego, Angélica repudia Patego, não lhe deu o seu consentimento e ela quer flirtar e ser objecto de desejo de terceiros refinados, o que ao marido só pode alegrar pois torna-se mais desejável na concorrência. O ciúme é uma prática social e as trocas de bilhetinhos, olhares e palavrinhas, próprias do comércio amoroso da gente fina. Para Patego é o fim do mundo, comprou uma menina fina para ser fidalgo e juntar o brasão — o estatuto — à fazenda e sai-lhe uma “galdéria” — o pior é não poder dar-lhe pauladas, é de outra condição.
Angélica tem vontade própria e Patego quer o pássaro na gaiola, quanto mais se afunda na tentativa de denunciar a verdade dos comportamentos da “esposa”, mais a “racionalidade” perdida das suas intenções ascendentes necessita tratamento psicanalítico: os monólogos de Jorge Patego que intermedeiam os episódios, vão revelando um desequilíbrio progressivo que, no divã-palco, encontra o seu espaço confessional: os espectadores são o seu partenaire psicanalista, de tal modo ele sofre e lhes revela o mal-estar que sente. Diria que essa dor é o caminho da descoberta de uma singularidade na visão proprietária de fazendeiro que o tem, pois é, na realidade, uma experimentação sensível. Curiosamente essa partilha de mal-estar com o público é já análise, no sentido freudiano.
Qual a questão desta peça? A impossibilidade de harmonizar o desejo de festa “libertino” de Angélica, próprio de um feminismo emergente em que a mulher já pensa o direito ao seu corpo, com o modelo de casamento que Patego tem na cabeça: obedecer e dar filhos, neste caso com estatuto nobilitado. Assim pensam também os pais dela que a venderam para escapar à ruína. Angélica di-lo a Patego: o seu negócio, o casamento, fê-lo com os pais e não com ela.
Pediu o meu consentimento?
Angélica é, para os Vilar de Tolos, um activo financeiro — o tempo da gleba foi-se — o único valor de mercado para escaparem à miséria entrando no mundo rendível do genro. Estão de joelhos, sem o mostrar, diante do mundo plebeu, não têm safa, são sobreviventes. A herdeira nada tem a herdar e o seu corpo torna-se a via negocial de um mínimo alimentar que perseguem.

A engrenagem dos prazeres

A engrenagem dos prazeres contrapõe vida a fechamento. Os jovens arranjam modo de se encontrar contra o que os pais querem e as trocas amorosas clandestinas são constantes: o amor, ou o prazer, nunca está onde as razões do poder patriarcal mandam. Claro que o teatro arranja, na comédia, um final feliz socialmente aceitável — a revolução virá e com ela a guilhotina —, fruto de enganos finalmente propícios. O happy end é a natureza dessa engrenagem depois dos desmandos cómicos praticados. Há sempre uma criada ao serviço dos prazeres escondidos da patroa que, por fim, tem também, um espaço próprio, uma recompensa. E um criado ao serviço dos desígnios do amoroso — neste caso, a figura de Manhoso é atípica, o que sinaliza, entre outros elementos, a excecionalidade desta comédia, tão trágica e sem happy end. Jorge Patego é uma comédia negra. Se a peça é sobre o lavrador rico, a riqueza não lhe traz a nobreza, ao negócio não correspondem os comportamentos da esposa que lhe é “infiel”, fiel que é aos prazeres de jovem desejosa de flirtar com gente fina, vinda de fora. Deste Modo a nada angélica Angélica, desejosa de comerciar segredos com qualquer Clitandre — nada conhece, ninguém, o horizonte é Vilar de Tolos —, um galã de ocasião, não cede aos propósitos do marido e nas barbas deste “entrega-se” a Clitandre — os seus bilhetinhos, a pose, a elegância, a conversa, as roupas, são tudo o que a jovem Vilar de Tola pode querer praticar. Aqui temos a história de um mundo fechado que mimetiza uma Versalhes que desconhece. Em Vilar de Tolos, esta família projecta a sua nobreza num passado arcaico de títulos nobiliárquicos e feitos ficcionados pelo próprio tempo que os reficciona na distância. Não só é nobreza arruinada, como a gloriosa árvore genealógica é uma soma de extravagâncias fundamentalistas — umas egrégias avós foram as mais castas senhoras e outros, machos, os mais corajosos mata-mouros. O exagero é a sua condição e estão tão longe da nobreza real que são tão pategos quanto o Patego embora por casamento passe Jorge Patego e a ser Vilar de Tolo e não estes a ser Senhores da Pategada. Nós sabemos como num país macrocéfalo a idolatria do centro é a mais provinciana das condições e contradições.

Poderes absolutos e tribunal de classe

Mas a pelintrice arruinada não significa que naquele microcosmo não exerçam ainda uma soberania absoluta — o que corresponde ao exercício do poder de Luís XIV.
É outro aspecto deste Jorge Patego, o marido humilhado e o que vais mais fundo, a meu ver. É que, de cada vez que a verdade dos factos parece poder verificar-se — Angélica engana Patego — Patego julga poder ganhar a sua causa e repor o casamento nos carris projectados provando em flagrante delito a infidelidade de Angélica. Mas a razão do insucesso do lavrador é clara: os poderes exercidos pela família arruinada, não sendo económicos, somam-se num só: o poder absoluto do Senhor de Vilar de Tolos é o de um tribunal familiar, de uma justiça feita pelas razões próprias, é ele, as suas razões, o seu exercício, as suas deliberações que decidem dos casos protestados pelo genro — ora, neste contexto, que vale a palavra de um camponês rico diante da de um nobre, mesmo teso? A verdade, os factos, de nada servem a Patego pois as artes de Angélica e de Claudina para fingir diante dos pais o contrário do que fizeram é totalmente eficaz: são peritas nesse fingimento. Patego acaba a pedir perdão a Clitandre, obrigado pelo sogro e pede perdão a Angélica — apanhá-la em flagrante delito com Clitandre converte-se numa prova de honra feminina, ela acusa o peralvilho de a importunar no seu sossego dedicado e marital. O corno Patego não consegue provar que é corno para sua infelicidade conjugal. Eis a comédia, eis a tragédia.

Conflito aberto

Outro aspecto notável deste Jorge Patego resulta dos momentos abertos de confronto de classe entre as partes, tanto nas acusações do marido humilhado aos sogros — o jogo fica a nu quando são acusados de apenas quererem os seus bens e de serem uns tesos (a isso não respondem, a nobreza exibida no trato e na forma ignora a sua penúria) — como nas acusações de Angélica ao marido. Diz ela: perguntou-lhe se ela anuía ao casamento, se teria alguma inclinação por ele? Isso torna claro o carácter investimento do casamento para Patego. Uma espécie de imagem de marca esse estatuto almejado, um marketing de época. Na verdade, corre também do lado da história o futuro das Angélicas, o tempo de autodeterminarem a sua vida amorosa e física inicia hostilidades e metodologias. É toda uma cultura do disfarce e do engano que se vai sofisticar. Estamos diante de dois processos de emancipação não convergentes, pelo contrário, dissidem: a ascensão da burguesia e a emancipação feminina.
Uma questão coloca: será que tal casamento beneficiaria em algum aspecto os negócios de Patego ou a questão do estatuto seria obsessão? Isso para além do desejo de expor o novo estatuto pois o estatuto só importa exposto, divulgado.
Nos momentos de verdade histórica o texto acede ao que trará a revolução francesa: a separação de poderes, um poder político parlamentarizado, uma justiça em busca de esfera jurídica própria, leis próprias, nos antípodas de uma justiça familiar e classista, exercida de certo modo na rua.

Fernando Mora Ramos

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Desafortunadas Ilhas

23 Agosto, 2023

Condenados às hierarquias, arrumados em classes sociais, os homens estão todos sujeitos à morte, mas nem todos passam a vida nas mesmas condições.
Se o homem está sujeito a tamanhas provações depois de pecar, não será a vida o verdadeiro inferno? E não o será especialmente para os mais pobres e desgraçados?

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O(s) Regresso(s) | Carlos Alberto Augusto

4 Abril, 2023

Estreou a peça Ajax (Regressos), de Jean-Pierre Sarrazac, uma produção do teatro da Rainha, encenada pelo Fernando Mora Ramos. É a 63ª peça para a qual concebi a musica ou o cenário acústico, quinta peça escrita por Sarrazac em que participo. Começou com a importante experiência que foi o Menino Rei, continuou com Envelhecer diverte-me, a Paixão do Jardineiro, a Morte de um DJ e prossegue agora com este Ajax, Regresso(s).

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Teatro da Rainha e Jean-Pierre Sarrazac : uma viagem | Inês Pereira

10 Março, 2023

Hoje, trinta e cinco anos depois, preparamo-nos para estrear dia 16 de Março Ajax, Regresso(s), com tradução de Isabel Lopes, também esta uma peça sobre uma viagem, ainda que de contornos completamente díspares.
Parece pertinente, neste contexto, avaliar a nossa própria viagem com este autor, que, ao longo dos anos, se tornou um amigo e um membro da família do Teatro da Rainha.

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