O riso é hoje negócio de “humor” — conformação de um tipo engrenado de piada aos desígnios de uma plateia cuja expectativa é rir quantidades garantidas por serão. Esse “humor” é mercado, vende-se na “graça” a metro e pesa-se à unidade, o “humorista” vive de um tipo de “transgressão” fruído por fãs — montado na hora, tem agenda: a política local, os casos celebrizados, os temas “fracturantes”. A sua estratégia é publicitária, o escândalo é a medida do sucesso.
O cómico é tão abrangente quanto o real, inscrito no dia-a-dia não depende da “agenda”, outra matriz o gera: a contrafação crítica de comportamentos visa a sociedade num aspecto particular, por exemplo, a mania das grandezas — o desfasamento entre ser pelintra e pavonear-se ou outras faltas de sentido do real. Aristófanes coloca Sócrates nas nuvens para gozar o filósofo, Vicente põe o escudeiro pelintra a comer amores, Pergopolinices antecipa a coragem apenas verbal do Capitão da Dell’arte na crítica do militar glorioso.
Molière cria tipos que retratam o humano revelando-lhe as intenções ocultas e expondo o ridículo que os “mata”: O Burguês fidalgo, As preciosas ridículas, Tartufo, criatura cuja hipocrisia desnuda.
O cómico no teatro é antropológico, vem da humanidade do homem (da sua desumanidade), o universo social é o seu terroir. Contém uma universalidade de situações, o que é motivo de riso por ser cómico socialmente, riso crítico. Contrafaz os comportamentos dos humanos entre si para devolver aos espectadores, pela deformação cómica — escola, estrutura e estilos —, uma imagem nua — a criatura mais séria fará rir, todo o excesso é uma doença comum. Ninguém escapa ao cómico, ao desencontro entre o que se é e o que se parece, o que se finge para se parecer sem o ser — exibir um estatuto não significa pertencer-lhe e pertencer-lhe não significa mais que exibir os traços reconhecíveis de um comportamento.
O cómico é sociológico na génese. O clássico mostra comportamentos das criaturas em sociedade: a arrogância, o medo, a pose, a falsa coragem, etc., são matéria-prima. É uma arma, faz cair impérios. Hoje em dia, no entanto, a ambivalência do cómico, o duplo sentido, a ironia, o sarcasmo, são rebaixados para uma literalidade que os trai, a massa come conteúdos unívocos em que se reconhece fã. Entretanto uma plateia de teatro é um microcosmo não massivo, cada um lê por si e uma inteligência comum dinamiza o que cada um aprofunda.
O cómico começa a estruturar-se em Aristófanes, Plauto, na farsa medieval, em Gil Vicente. Em Aristófanes é política: a Paz é uma comédia pela Paz. Molière é um dos grandes expoentes universais do cómico, o seu Tartufo um manifesto contra a beatice fundamentalista hipócrita.
Qual a diferença específica do cómico anterior à indústria? É que no cómico profundo a existência de uma dimensão trágica é-lhe interior e a procura unilateral de um resultado garantido não é absoluta, a tentativa é o princípio, não há êxitos mecânicos: muitas peças de Molière não se aguentavam muito tempo.
Não é possível isolar na realidade apenas os aspectos risíveis, não existem em estado puro. A realidade é um complexo contraditório de factores constituintes.
Neste Jorge Patego a dimensão cómica — Patego é um “caso de estudo” — assenta na cisão identitária do protagonista: entre o estatuto querido e a impossibilidade de lhe aceder por via da “fazenda” — o que constata já depois de casado, a esposa não é a que comprou, a norma dela não é a dele. O lavrador rico não entende que o dinheiro não aplane a beldade arisca, comprou um objecto. Não se compra tudo? Na trama de Jorge Patego, Angélica repudia Patego, não lhe deu o seu consentimento e ela quer flirtar e ser objecto de desejo de terceiros refinados, o que ao marido só pode alegrar pois torna-se mais desejável na concorrência. O ciúme é uma prática social e as trocas de bilhetinhos, olhares e palavrinhas, próprias do comércio amoroso da gente fina. Para Patego é o fim do mundo, comprou uma menina fina para ser fidalgo e juntar o brasão — o estatuto — à fazenda e sai-lhe uma “galdéria” — o pior é não poder dar-lhe pauladas, é de outra condição.
Angélica tem vontade própria e Patego quer o pássaro na gaiola, quanto mais se afunda na tentativa de denunciar a verdade dos comportamentos da “esposa”, mais a “racionalidade” perdida das suas intenções ascendentes necessita tratamento psicanalítico: os monólogos de Jorge Patego que intermedeiam os episódios, vão revelando um desequilíbrio progressivo que, no divã-palco, encontra o seu espaço confessional: os espectadores são o seu partenaire psicanalista, de tal modo ele sofre e lhes revela o mal-estar que sente. Diria que essa dor é o caminho da descoberta de uma singularidade na visão proprietária de fazendeiro que o tem, pois é, na realidade, uma experimentação sensível. Curiosamente essa partilha de mal-estar com o público é já análise, no sentido freudiano.
Qual a questão desta peça? A impossibilidade de harmonizar o desejo de festa “libertino” de Angélica, próprio de um feminismo emergente em que a mulher já pensa o direito ao seu corpo, com o modelo de casamento que Patego tem na cabeça: obedecer e dar filhos, neste caso com estatuto nobilitado. Assim pensam também os pais dela que a venderam para escapar à ruína. Angélica di-lo a Patego: o seu negócio, o casamento, fê-lo com os pais e não com ela.
Pediu o meu consentimento?
Angélica é, para os Vilar de Tolos, um activo financeiro — o tempo da gleba foi-se — o único valor de mercado para escaparem à miséria entrando no mundo rendível do genro. Estão de joelhos, sem o mostrar, diante do mundo plebeu, não têm safa, são sobreviventes. A herdeira nada tem a herdar e o seu corpo torna-se a via negocial de um mínimo alimentar que perseguem.

A engrenagem dos prazeres

A engrenagem dos prazeres contrapõe vida a fechamento. Os jovens arranjam modo de se encontrar contra o que os pais querem e as trocas amorosas clandestinas são constantes: o amor, ou o prazer, nunca está onde as razões do poder patriarcal mandam. Claro que o teatro arranja, na comédia, um final feliz socialmente aceitável — a revolução virá e com ela a guilhotina —, fruto de enganos finalmente propícios. O happy end é a natureza dessa engrenagem depois dos desmandos cómicos praticados. Há sempre uma criada ao serviço dos prazeres escondidos da patroa que, por fim, tem também, um espaço próprio, uma recompensa. E um criado ao serviço dos desígnios do amoroso — neste caso, a figura de Manhoso é atípica, o que sinaliza, entre outros elementos, a excecionalidade desta comédia, tão trágica e sem happy end. Jorge Patego é uma comédia negra. Se a peça é sobre o lavrador rico, a riqueza não lhe traz a nobreza, ao negócio não correspondem os comportamentos da esposa que lhe é “infiel”, fiel que é aos prazeres de jovem desejosa de flirtar com gente fina, vinda de fora. Deste Modo a nada angélica Angélica, desejosa de comerciar segredos com qualquer Clitandre — nada conhece, ninguém, o horizonte é Vilar de Tolos —, um galã de ocasião, não cede aos propósitos do marido e nas barbas deste “entrega-se” a Clitandre — os seus bilhetinhos, a pose, a elegância, a conversa, as roupas, são tudo o que a jovem Vilar de Tola pode querer praticar. Aqui temos a história de um mundo fechado que mimetiza uma Versalhes que desconhece. Em Vilar de Tolos, esta família projecta a sua nobreza num passado arcaico de títulos nobiliárquicos e feitos ficcionados pelo próprio tempo que os reficciona na distância. Não só é nobreza arruinada, como a gloriosa árvore genealógica é uma soma de extravagâncias fundamentalistas — umas egrégias avós foram as mais castas senhoras e outros, machos, os mais corajosos mata-mouros. O exagero é a sua condição e estão tão longe da nobreza real que são tão pategos quanto o Patego embora por casamento passe Jorge Patego e a ser Vilar de Tolo e não estes a ser Senhores da Pategada. Nós sabemos como num país macrocéfalo a idolatria do centro é a mais provinciana das condições e contradições.

Poderes absolutos e tribunal de classe

Mas a pelintrice arruinada não significa que naquele microcosmo não exerçam ainda uma soberania absoluta — o que corresponde ao exercício do poder de Luís XIV.
É outro aspecto deste Jorge Patego, o marido humilhado e o que vais mais fundo, a meu ver. É que, de cada vez que a verdade dos factos parece poder verificar-se — Angélica engana Patego — Patego julga poder ganhar a sua causa e repor o casamento nos carris projectados provando em flagrante delito a infidelidade de Angélica. Mas a razão do insucesso do lavrador é clara: os poderes exercidos pela família arruinada, não sendo económicos, somam-se num só: o poder absoluto do Senhor de Vilar de Tolos é o de um tribunal familiar, de uma justiça feita pelas razões próprias, é ele, as suas razões, o seu exercício, as suas deliberações que decidem dos casos protestados pelo genro — ora, neste contexto, que vale a palavra de um camponês rico diante da de um nobre, mesmo teso? A verdade, os factos, de nada servem a Patego pois as artes de Angélica e de Claudina para fingir diante dos pais o contrário do que fizeram é totalmente eficaz: são peritas nesse fingimento. Patego acaba a pedir perdão a Clitandre, obrigado pelo sogro e pede perdão a Angélica — apanhá-la em flagrante delito com Clitandre converte-se numa prova de honra feminina, ela acusa o peralvilho de a importunar no seu sossego dedicado e marital. O corno Patego não consegue provar que é corno para sua infelicidade conjugal. Eis a comédia, eis a tragédia.

Conflito aberto

Outro aspecto notável deste Jorge Patego resulta dos momentos abertos de confronto de classe entre as partes, tanto nas acusações do marido humilhado aos sogros — o jogo fica a nu quando são acusados de apenas quererem os seus bens e de serem uns tesos (a isso não respondem, a nobreza exibida no trato e na forma ignora a sua penúria) — como nas acusações de Angélica ao marido. Diz ela: perguntou-lhe se ela anuía ao casamento, se teria alguma inclinação por ele? Isso torna claro o carácter investimento do casamento para Patego. Uma espécie de imagem de marca esse estatuto almejado, um marketing de época. Na verdade, corre também do lado da história o futuro das Angélicas, o tempo de autodeterminarem a sua vida amorosa e física inicia hostilidades e metodologias. É toda uma cultura do disfarce e do engano que se vai sofisticar. Estamos diante de dois processos de emancipação não convergentes, pelo contrário, dissidem: a ascensão da burguesia e a emancipação feminina.
Uma questão coloca: será que tal casamento beneficiaria em algum aspecto os negócios de Patego ou a questão do estatuto seria obsessão? Isso para além do desejo de expor o novo estatuto pois o estatuto só importa exposto, divulgado.
Nos momentos de verdade histórica o texto acede ao que trará a revolução francesa: a separação de poderes, um poder político parlamentarizado, uma justiça em busca de esfera jurídica própria, leis próprias, nos antípodas de uma justiça familiar e classista, exercida de certo modo na rua.

Fernando Mora Ramos

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