- Comecemos pela estrutura: um tríptico, sendo que a parte do meio se subdivide em 5. É uma estrutura complexa porque as partes são muito diferentes entre si, na forma e no conteúdo. O que é que, para ti, torna esta peça num objecto uno?
O que unifica de modo sempre descontinuo, creio, são dois elementos, a ideia de viagem em direcção à tal felicidade que é enunciada no título e na cena pelo tio Bob como o contrário daquela miséria em que a família se encontra naquele miserável natal, um algures longe da mediocridade, vago como nas utopias e luzindo ao longe.
E um segundo elemento que diz respeito ao fechamento ego-centrado de cada criatura, de cada “personagem alinhavado” (a costura mais íntegra é do espectador) e de cada voz. Crimp chama “detritos mentais” ao que se diz na segunda parte, uma espécie de manifesto do individualismo narcisista olhado como finalidade existencial, sentido da vida confundido com uma idolatria de si mesmo, o sujeito incapaz de sair da sua pele. Era Sartre, creio, que dizia que a pele é uma fronteira, a fronteira de cada um. O que significa que as relações são, todas elas, relações de poder.
Neste tríptico, o individualismo estimulado pelo empreendedorismo acéfalo neoliberal contido na cultura que lhe é específica, a ideologia publicitária capitalista, é levado a um extremo — a peça é claramente um libelo contra o extremismo capitalista, é anticapitalista. Todas as vozes são cheias de si, os eus são imperiais, impositivos e em permanente autoelogio, a morte é resolúvel com uma cirurgia estética, o meu trauma é o meu trauma, a sociedade não existe, o parceiro que se foda, as relações são descartáveis e informes, o bem comum não existe. Creio que o tríptico é um alerta para este individualismo anti sociedade, um novo extremismo que, na realidade, é a expressão mais narcísica e extremista da lógica liberal. Há um filósofo que diz esta aparente boutade: é preciso defender a sociedade.
- O título, “Na República da Felicidade”, é o da última parte, precedida de uma epigrafe de “A Divina Comédia”, de Dante, que, curiosamente, também se dividia em três: Inferno, Purgatório e Paraíso. Há uma dimensão satírica na obra de Dante que me parece também presente nesta peça de Crimp. Quais são os principais alvos da pena afiada do dramaturgo britânico?
Creio que a glosa estrutural de Crimp é seguida pelo Tio Bob e pela sua Beatriz, Maddy — isto é, são eles que viajam até esse final que anunciam para longe daqueles medíocres, os velhos descartáveis a cheirar a “carpete molhada”, o casal na sua “bolha de ar irrespirável”, as miúdas que “não deveriam ter nascido”. Maddy é manipuladora como a Beatriz de Dante, que lhe exige uma perfeição no amor que o despe de sexo e de referências carnais e terrenas, para apenas o conjugar num além divino, lá onde o amor é puro e a convergência entre fé e amor se torna una. A pura Beatriz é a Igreja Católica, de algum modo.
Nesta peça, Maddy é também intangível, está para além do sexo — ela não toca em ninguém —, é uma dominadora, ela existe apenas como manipuladora, tortura disfarçada de um estranho amor de que Bob é dependente como se é dependente de uma droga dura. Maddy é a droga dura dele e ele vai esgotar-se extenuado de uma overdose dela. É um burnout amoroso: em nome do amor, a tortura — lembra o fado rasca dos dias mas é mais perverso e por dentro de um negócio que assenta nos “downloads de felicidade” sob a forma de canção e faz supor umas palestras a dois com Bob a palestrante e Maddy em ícone.
Esta viagem dos dois é a que refere a viagem da Divina Comédia. Com uma paragem no purgatório, em que todos estão de mala aviada para andar para onde for, lugar de trânsito, um “aeroporto”.
Na primeira parte é a “destruição da família” que acontece em directo, um directo cénico da tragédia desta destruição feita de guerras irrelevantes e minúsculas, medíocres como os elementos da família são. O que é pequenino e sem importância envenena definitivamente, numa disputa sem limite, as relações intrafamiliares e cria divisões e antagonismos insanáveis. Todos dentro da sua bolha, todos solitários ferozes, como Hazel, ou seres fofinhos, como Debbie, capazes de demagogia afectiva para atingir objectivos, sempre pequenos e medíocres, finalidades na esfera do consumo e, no caso de Debbie, a futura criança como um seguro de família atribuído pelos pais em proteção e privilégios. Sempre venais, sempre relacionados com dinheiro. O dinheiro, sendo invisível, é omnipresente.
É assustador o discurso em que a avó, para manifestar o seu desprezo pela qualidade genética dos presentes e da massa em geral — ela é cientista —, diz: «Gosto de ver o taxímetro a contar». Ela gosta de ver o taxímetro correr, dá-lhe um prazer extremo — equivalente de outros —, principalmente gastando no tempo da corrida o que um desgraçado operário tem de se esforçar para ganhar com muito trabalho suado.
Mas isto piora, pode sempre piorar: chegados ao Paraíso, a terceira parte, o que nos é dado finalmente perceber é que a prometida Felicidade é uma canção mal soletrada de harmonia indigente que um Tio Bob moribundo tenta murmurar. Chegámos ao embrulho perfeito de um vazio projectado em que todos se podem identificar sem contornos, a absoluta insignificância como finalidade, a alienação total — não há melhor droga do que esta fé de pequena seita assente na qualidade dos sucedâneos, na paixão do simulacro, na estupidez fanática. Há nisto uma crítica feroz do pós-modernismo, cuja bitola de valores faz com que tudo se equivalha, que tudo se valorize da mesma forma, o pentelho com a tragédia, o tsunami com o amuo da criança, o amor ao ursinho de peluche com um afecto real. Crimp dispara contra a mentalidade criada pela publicidade como cultura deste capitalismo da arrogância, do menosprezo e da vaidade narcísica, da mistura de autocomplacência com auto-suficiência.
- Não é a primeira vez que abordas o teatro de Martin Crimp, autor que sei ser da tua predilecção. Em todas as peças que vi dele a instituição familiar ocupa um papel central, mas sempre de um ponto de vista muito crítico. Nesta peça em concreto, qual é o espaço que a família ocupa?
Ele dá cabo da família, pois a família há muito que se auto destruiu. Daquela família piramidal, respeitada, com hierarquias aliás opressivas, nada resta. O que resta é, como o outro diz, o que corresponde aos “cemitérios em actividade”. As coisas levam décadas a morrer estando já mortas. Há muito disso espalhado por aí. A força reacionária do que a história pôs em pantanas emerge, no entanto, com muita violência, adia a sua morte. A família são hoje muitas formas de estruturação do tipo familiar. Aqui na peça, e creio que nas outras peças, este desenho revelador do mal-estar desta estrutura muito baseada no modelo católico — a família sagrada — e em rituais calendarizados, pretende fazer pensar noutros modos organizativos que se encontrem no estabelecimento de vínculos comunitários que o feroz individualismo deitou por terra. Não que ele fale disto, mas o que está ausente também se torna referência desde que o que se lê seja tão inaceitável que gere, pela negativa, o pensar numa hipótese alternativa.
Creio que o sarcasmo impiedoso de Crimp, sem nunca o manifestar, afirma, em alternativa a este mundo e a esta família que resiste no meio de uma Igreja generalizadamente pedófila e de instituições essencialmente corruptas, um mundo de relações verdadeiras e não postiças, falsas ou maquilhadas, um mundo que não será de promessas mas de comportamentos reais diversos dos que imperam por sistema.
A família é um objecto de (in)actualidade e diagnóstico satírico para Martin Crimp, como o é o mundo gerado pela publicidade que pretende desconhecer a política, a divisão, as classes sociais, para impor um ideal que, pelos vistos, pode ser encomendado e remetido online e que é sempre desqualificado e vazio.