NA REPÚBLICA DA FELICIDADE
Em 2024, o reportório e programa do Teatro da Rainha mergulha fundo nas marés vivas desse statu quo a que nos tempos de Sá de Miranda, Gil Vicente ou Camões se dava o nome de desconcerto do mundo. Vivemos hoje sob uma tempestade perfeita, lado a lado com uma horda de náufragos e criaturas à deriva. Sobre isso nos fala a primeira criação do ano, “Às duas horas da manhã”, do alemão Falk Richter, a partir de um arquipélago de monólogos constituído por gente cuja identidade, projectos familiares e afectuosos foram esmagados pelas exigências da vida profissional.
As personagens de Richter são indivíduos com as vidas congeladas, cativos de frustrações acumuladas que se libertam quando o silêncio se instala e o sono não vem. É a essa hora da noite invocada no título que a vontade de mudar tudo, de dar uma volta à vida, se impõe enquanto necessidade de algo autêntico, ou seja, o oposto de uma existência globalmente conectada, em rede, que isola cada ser na sua bolha individualista. Estreámos em Março, na Sala Estúdio do Teatro da Rainha, e andaremos em digressão pelo Teatro das Beiras (Abril) e pelos Artistas Unidos (Maio).
Julho será mês de Molière. O encenador Fernando Mora Ramos regressará a “Georges Dandin” — “Jorge Patego”, na tradução de Isabel Lopes —, peça com que se estreou na encenação em 1979. Também nesta comédia francesa do século XVII o tema da felicidade se aproxima de uma indagação acerca do que é verdadeiro e genuíno, numa crítica das aparências e do superficial enquanto adulteração da essência, do que há de mais puro e subtil num ser. Este espectáculo, que realizamos numa relação estreita com o município das Caldas da Rainha, é um momento de encontro com a população em espaço público, ideal para a revisitação de clássicos como este de Molière.
“George Dandin”, o marido confundido, estreou no Palácio de Versalhes, visto por Luís XIV e convidados, a 18 de Julho de 1668. É uma lição de comportamentos de classe, no modo como retrata uma aristocracia provinciana imitante da corte de Versalhes. Um camponês desejoso de ascender socialmente casa por conveniência, acabando na mais profunda infelicidade por descobrir aquilo que o dinheiro não compra: o amor. George Dandin introduz-nos, deste modo, na sociedade das aparências, da superficialidade e das futilidades que hoje se manifestam num culto do aparecer em prejuízo do ser.
Terminaremos o ano com “Na República da Felicidade”, peça de Martin Crimp que levaremos à cena em co-produção com o Teatro Nacional de São João. Se a felicidade enquanto problema é o campo em que estes três espectáculos se inscrevem, o universo familiar surge-nos como fio temático condutor de uma programação atenta às fissuras nos pilares da nossa sociedade. A congelação dos projectos familiares, em Richter, e a família enquanto estratégia calculista, em Molière, encontrarão “Na República da Felicidade” o seu monumento arqueológico em ruínas. A destruição da família é o que está em causa neste tríptico com um título que ironiza o desamor, a degradação das relações afectivas, a venalidade, a competição, a inveja, o ciúme, a ambição egoísta que arruínam qualquer ideia de felicidade colectiva.
Nas palavras de Fernando Mora Ramos, Director do Teatro da Rainha: «com esta peça realizamos o que mais nos caracteriza como companhia de experimentação e práticas de reportório: falar desta nossa actualidade de um modo historicamente sustentado, portanto distanciado, ao mesmo tempo que se sugere que no caos instalado o futuro nem incógnita é, mas sim um plano inclinado a dirigir-se para a realização da lixeira final global. O teatro tem essa função premonitória, sempre teve.»