No dia 8 de Março de 2021 recebi um e-mail do Fernando Mora Ramos abordando, entre outros assuntos, a possibilidade de uma montagem de textos vicentinos articulados com “O Compromisso da Rainha” (1512), documento fundador de um serviço público de saúde em torno do qual a cidade das Caldas da Rainha veio a desenvolver-se. Eu desconhecia o conteúdo do “Compromisso”, mas sabia do “Auto de S. Martinho” (1504) e da sua relevância na história da cidade termal — «representado à mui caridosa e devota Senhora a Rainha Dona Lianor na Igreja das Caldas, na procissão de Corpus Christi». Calha que resido há 23 anos nas imediações de uma maltratada Rua Gil Vicente, homenagem ao pai do teatro português em tosca placa toponímica. Aqui o vi representado, e bem, pelo Teatro da Rainha, muito antes de sequer imaginar poder ligar-me um dia à (quase) quadragenária companhia sediada nas Caldas.
“S.N.S. Leonor” seria o nome desse espectáculo imaginado pelo Fernando como resposta urgente a uma maleita que então abria e encerrava todos os noticiários. Nos tempos da troika e da austeridade já se falava das dores do Serviço Nacional de Saúde, cujas chagas ficaram expostas durante a pandemia de COVID-19. “S.N.S.”, a peça que agora se apresenta integrada num díptico, possível de se libertar e ganhar autonomia como qualquer um dos painéis que compõem “Os Míseros” enquanto todo, germinou nesta partilha de intenções no meio de confinamentos. Não admira, portanto, que esse tempo pandémico surja em pano de fundo, não tanto como tema nuclear a partir do qual a acção de desenrola — ele é circunstancial, no sentido em que possibilita a exploração de situações diversas que não estão especificamente empenhadas em retratar um período histórico concreto —, mas antes como pretexto para a abordagem de inúmeras epidemias sociais.
Ao lermos o “Auto de S. Martinho” e o “Compromisso” sobressai o tema da caridade, uma caridade cristã representada no “Auto” a partir de um episódio hagiográfico e plasmada, com o “Compromisso”, na edificação de uma obra de misericórdia que tinha em vista o tratamento do corpo e do espírito. Em ambos os casos esta caridade tem por fim combater a pobreza. Ainda que seja tentador procurar distinguir aquela caridade da solidariedade secular posteriormente promovida pela Revolução Francesa, parece-me adequado interpretar a literatura quinhentista à luz dos princípios que nortearam o humanismo do Renascimento, inspirado numa antiguidade greco-latina com o propósito de devolver ao homem o seu poder transformador da realidade. O poder que a Igreja então exercia era diferente, obrigando a subterfúgios que as narrativas renascentistas denotam exemplarmente através de recursos literários de uma inteligência irónica sem precedentes. Leiam-se, a título de exemplo, “O Elogio da Loucura”, de Erasmo de Roterdão (1466-1536), ou o genial “Pantagruel”, de François Rabelais (1494-1553).

O gesto de São Martinho, ao partilhar a capa com um pobre, é acompanhado da consciência dos males para os quais não tem remédio. Do mesmo modo, o “Compromisso” determina que os escravos ao serviço no Hospital sejam, e passo a citar, «bem tratados e providos à custa do dito Hospital, do comer, beber, vestir e calçar.» O que há de transformador nestes dois exemplos é a modelação de um olhar filantrópico, generosamente empenhado em resgatar os miseráveis da miséria. Exactamente o oposto da luz que hoje tolda vistas, varrendo para debaixo do tapete a indigência condenada ao desamparo de milhares de náufragos anónimos com menos audiência na comunicação social do que cinco milionários vitimados no decorrer de uma visita lúdica aos destroços do Titanic. No Luxemburgo vigora uma lei que proíbe a mendicidade na capital entre as 7h e as 22h, assim tornando invisível a pobreza naquele que dizem ser o país mais rico do mundo. Importa também sublinhar que as regras estabelecidas pelo “Compromisso” eram, não fosse alguém esquecer-se ou fazer-se esquecido das suas obrigações, relidas todos os anos num cerimonial celebrado a 1 de Abril. Parece mentira. Imagine-se os nossos deputados a relerem a Constituição da República Portuguesa, que a maioria provavelmente nunca leu, a cada 5 de Outubro.
Após a leitura do “Compromisso” e do “Auto de S. Martinho”, com os quais “S.N.S.” estabelece diversos nexos intertextuais, estimulou-me a hipótese de cogitar o conceito de generosidade à luz de uma misantropia contemporânea, a necessidade de pensar como a solidariedade fundadora da democracia vem sendo ameaçada por vários tipos de individualismo, pelo consumismo apoteótico de massas indiferentes ao outro, pelas “casas electrónicas” de que parte substancial da humanidade se faz reclusa, pelo narcisismo apático e estratégico que Lipovetsky (1944) acusava premonitoriamente em “A Era do Vazio” (1983). A pandemia tornou evidente o outro enquanto inimigo, já não o inferno de que Sartre falava num contexto de reflexão acerca do problema da liberdade, mas o outro do qual devemos afastar-nos para não sermos contaminados, esse outro que, levantadas as restrições sanitárias, inspira mais desconfiança do que a curiosidade natural em quem busque encontros inesperados com o diverso.
A peça “S.N.S.” não foi escrita a pensar no díptico concebido por Fernando Mora Ramos. Do primeiro painel, composto por uma montagem de textos vicentinos, só tive conhecimento depois de a dar por concluída. Ora, se há aprendizagem que a escrita para teatro me ofereceu foi a de que um texto nunca está concluído, nem depois de ser levado à cena. O texto é um organismo vivo que nasce, cresce, transforma-se e morre. Só os melhores sobrevivem no tempo. Veja-se Vicente. Uma troca intensa de mensagens e de impressões de leitura com o Fernando permitiu apurar, aqui e acolá, as características das personagens, que são mais tipos sociais do que caracteres individualizados. A sátira é o ventre em que foram geradas, uma sátira de lamparina acesa em pleno dia na busca de homens virtuosos.
Há soluções dramatúrgicas descobertas pelo encenador de “Os Míseros” que sublinham cambiantes apenas implícitos no texto, o qual foi sendo maturado durante os ensaios com actualizações, cortes, coincidências inopinadas. Esta, para dar um exemplo, de tanto no início como no termo do espectáculo, refiro-me ao todo, se pronunciar a palavra verme no plural. Entre o Adão que anuncia a morte e a miúda que desfere um golpe sobre os inocentes há um círculo que se fecha. A morte persegue-nos. E talvez seja ela, de facto, o ponto de encontro entre o primeiro e o segundo painéis, não como termo de uma jornada, mas como princípio regenerador que acompanha os ciclos da vida matizando a passagem do tempo com tonalidades e bandas sonoras distintas.
A divisão de “S.N.S.” em quatro partes — Novo Normal, Isolamento Social, Vai Ficar Tudo Bem, Últimos Desejos — imprime uma dinâmica que faz tudo tender para o terminal exame da consciência, rememoração do vivido, revisão da matéria dada. Também Maria Parda, a do “pranto jocoso”, diz-nos os seus últimos desejos no primeiro painel de “Os Míseros”. E será assim tão forçado estabelecer um paralelismo entre as blasfémias de João Mortinheira, de “Romagem de Agravados” (1533), e o niilismo pós-moderno do Martinho em “S.N.S.”? Isto para não falar da loucura, das alucinações, da dimensão paródica, das enumerações caóticas presentes tanto num como no outro painel de “Os Míseros”.
A maçã do Éden converteu-se em bananas no Averno, a cobra tentadora transformou-se em carregador de smartphone, a diabólica trindade fundiu-se num Caronte que não tem mãos a medir no trabalho. É o Deus único do neoliberalismo. O sem-sentido em Gil Vicente, extraordinariamente abordado por Óscar Lopes em artigo publicado na “Seara Nova” (1965), tem essa riqueza impagável que permite recolher conexões para lá de realidades socioespaciais circunscritas no tempo. Diz ele: «na concepção vicentina de realidade, não só se admitem soluções (ou indeterminações) de continuidade cronológica e espacial, como o eterno aparece na contiguidade imediata do temporal, o quotidiano na do alegórico, o sacro na do profano, o sério na do jocoso, o real na do possível ou irreal, os factos na dos sonhos.» O grito dado por Vicente há 500 anos chega-nos sob a forma de um eco vivíssimo ao qual é impossível escapar quando tentamos compreender o desconcerto do mundo, desconcerto que, segundo o mais básico dos raciocínios indutivos, somos levados a crer irremediável. Haja teatro.

A ILHA
A ilha é um dos temas fundamentais de toda a literatura, símbolo de centro espiritual ao qual se chega navegando ou voando. Em qualquer um dos casos, ela é quase invariavelmente paraíso terrestre. Assim acontece na mitologia grega e na tradição muçulmana, nas ilhas míticas dos Celtas e da tradição hindu. Protegidas da agitação mundana, as ilhas aparecem como refúgio e microcosmo em que é possível representar, de um modo concentrado, o meio profano. Em “S.N.S” a ilha é lugar de fuga, mas num sentido distópico. Ao contrário da Utopia descrita pelo marinheiro português no livro de Thomas Morus (1487-1535), coetâneo de Gil Vicente, a nossa ilha não alberga uma sociedade perfeita. A dado momento sugere-se mesmo que aquela ilha é o Inferno, isso transmite o seu único habitante às visitas imprevistas. O Inferno opõe-se à idade edénica por onde começa “Os Míseros”, num trecho do “Breve Sumário da História de Deus” (1527) que coloca em cena Adão e Eva no momento da Queda. Portanto, o que poderia haver de paradisíaco na ilha em que Martinho se refugia transforma-se rapidamente em tortura. Não há fuga possível. Eis uma das características da modernidade, o paraíso é irrecuperável, está sob a alçada de vigilantes totalitaristas. Para onde quer que nos desloquemos, o Inferno persegue-nos. Não há fuga possível para quem pretenda afastar-se da civilização. Mais tarde ou mais cedo, o vírus invadir-nos-á o covil que julgávamos inviolável.

CARONTE
«Então, não gostam do Inferno?» Quem é o Caronte que deste modo questiona os seus interlocutores? Da mitologia grega ele conserva duas características essenciais: é barqueiro e é avarento. Diga-se, já agora, que era ele quem geria o comércio de sombras no mundo subterrâneo, fazendo-as atravessar o sinistro rio Estige se tivessem dinheiro para o efeito. As que não tinham, estavam condenadas a errar eternamente nas margens. Destino dos bons mortos, as Ilhas Afortunadas cumprem igualmente aqui o seu papel discriminatório. Não são para quem quer, são para quem pode. Caronte atravessa os tempos, está em Aristófanes, Vergílio, Dante, Milton… No Inferno de Dante, o arrais trabalha ante o Limbo. A nossa ilha é isto mesmo, um limbo, em que o cinismo desta personagem se impõe pelo domínio que tem da situação. Ele está fora da ilha, observa-a, comerceia com quem nela está e para ela vai ou quer ir, vende notícias como uma máquina debulhadora de factos, espia a ilha com a eficácia de um Pegasus. Caronte é hiperactivo, inconstante, tal como os mercados, esses cuja saúde é sempre motivo de inúmeras preocupações. Montado na sua barquineta com mochila de startup no negócio da distribuição (sugestão do Fernando imediatamente acolhida), personifica a mão invisível que tudo controla e ninguém fiscaliza. Imagino-o a marear num arquipélago de paraísos fiscais. «É complicado.»

MARTINHO
A hipótese de um Martinho isolado numa ilha, de costas voltadas para a civilização, descrente da caridade e da solidariedade e da compaixão e da espiritualidade, é-me hoje tão plausível quanto não haver ninguém que ouse expulsar os vendilhões do Templo. Antes pelo contrário, os vendilhões são promovidos e elogiados como mais-valias na relação custo-benefício da fé. O Martinho de “S.N.S.” abdicou da santidade despedindo-se da sociedade, adoptando como exemplo, para não irmos mais longe, as práticas do transcendentalista Henry David Thoreau (1817–1862). Em Thoreau, a experiência não muito demorada de isolamento foi minuciosamente descrita em “Walden ou a Vida nos Bosques” (1854), na esperança de que a simplificação da vida descomplicasse as leis do universo. O Martinho de “S.N.S.” é devedor desse legado, mas de um modo ambíguo e ambivalente. Afastou-se do mundo, embora pergunte por ele a Caronte. Representa um modo comum de se estar imerso na realidade, colocando-se num patamar de desresponsabilização que tendemos a chamar de “zen contrafeito”. «A mim não, que nada tenho que ver com isso», diz, a falar de si para si com a natureza que o ouça. A chegada à ilha de gente com quem terá de partilhar um espaço que julgava exclusivamente seu relembra-lhe a fatalidade dos factos: o homem é um ser político, nunca está só no cosmos. O planeta não deixa, seja no nível das águas que sobem, na poluição que baralha o clima, no ruído que nos ensurdece. Entretanto, morreu o último índio Tanaru, da Amazónia brasileira. Vivia voluntariamente isolado há quase três décadas, após a extinção da sua tribo. Era o último sobrevivente de uma comunidade indígena devastada. Notícia de Agosto de 2022.

AS MARTAS
«Dinamarca abate 15 milhões de martas devido a SARS-CoV-2 mais resistente.» Esta é de 4 de Novembro de 2020. Contado parece difícil de acreditar, mas ainda não foi há 3 anos que tal catástrofe se deu. Duas martas, porém, escaparam ao abate, escapuliram-se para a ilha de Martinho. São jovens e amam-se, têm formas humanas, femininas. Se calhar são. A ficção permite-nos este tipo de efabulações. Marta & Marta são faces de uma mesma moeda, produto da geração que, garante-nos estudo recente, admite estar viciada nas redes sociais. «Estudo revela que 86% dos jovens portugueses estão viciados nas redes sociais», diz a notícia. O resultado mais evidente disto é, para já, uma uniformização dos comportamentos e do pensamento que mandou para a reciclagem o espírito crítico. Andamos a produzir cretinos digitais em massa, para usar a expressão de Michel Desmurget (1965). No entanto, as faces de uma mesma moeda não são exactamente iguais. Há numa delas uma desconfiança e um interesse pelo que a rodeia que a outra canaliza para o telemóvel, único motivo das suas preocupações. Elas caricaturam a vitória do parecer sobre o ser e do supérfluo sobre o necessário. O trólei que transportam, repleto de artigos de maquilhagem, é, por metonímia, a caixa de Pandora de uma nova teodiceia: a da objectificação do feminino enquanto retórica da sedução para fins publicitários. Não obstante, cabe-lhes o único gesto verdadeiramente solidário durante a peça. Se Martinho lhes dá de esmola duas bananas, elas respondem-lhe carregando-o aos ombros quando ele adoece. Ainda há esperança. O monólogo final, porventura o mais revelador de um certo humor cínico que o texto engendra, é também de uma das martas. O inesperado acontece.

NEGACIONISTA
O pobre no “Auto de S. Martinho” tem o corpo doente, anseia pela morte, pede esmola que lhe mate a fome. As chagas que traz no corpo são incuráveis. O pobre em “S.N.S.” é de espírito, o seu corpo não exibe chagas. É no sermão que prega aos peixes que elas melhor se notam. Inspirado nas teorias conspirativas do QAnon, este pobre de espírito podia ser apoiante de um qualquer populista. «A utente doente dá-lhe a beber detergente», proclama entre gargalhadas ressoando o Trump que aconselhava injecções de desinfectante contra o coronavírus. Muito activos durante a pandemia, os negacionistas fizeram-se por cá notar na figura de um ex-juiz com uma horda multifacetada de seguidores. Declaravam-se pela verdade, negando a ciência, organizavam-se em movimentos de resistência com braços armados e milícias anti-sistema. Esta gente que nega à medicina o mais básico valor da verdade não se exime de alardear as suas próprias convicções, as quais estão longe, muito longe, de redundar numa qualquer actualização de cepticismo clássico. Têm as suas verdades absolutas, as quais passam, desde logo, pela revelação da fé contra a afirmação da ciência. O nosso negacionista crê na cafeomancia, adivinha o futuro nas borras do café. Em matéria de nonsense, a ficção já pouco pode diante da realidade com que nos deparamos diariamente. O absurdo imiscui-se no real e com ele se confunde. Não há inocentes, somos todos culpados de tudo e de todos. «Respira-se aqui a loucura!» Exclamava Raskólnikov.

Henrique Manuel Bento Fialho
Caldas da Rainha

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