Se Deus morreu, «tudo é permitido». Esta frase poderia servir de lema à peça de Joseph Danan «Police Machine», encenada pelo autor, espetáculo estreado no Teatro da Rainha e que se encontra atualmente em digressão. Num mundo sem sentido em que cada um perde as suas referências, o niilismo e a ausência de valores geram um processo ininterrupto, em crescendo, de violência e prepotência em que o “homem se torna lobo do homem” – aqui não podemos «respeitar» a diversidade de género, a frase é de Thomas Hobbes, filósofo político do século XVII – ou em que a relação social se converte numa relação/contraposição amigo-inimigo que se alimenta a si própria numa espiral ascendente em que os papéis sociais tradicionais deixam de se distinguir. Cada um procura explorar em proveito próprio uma irracional e prepotente vontade de poder em que os mais débeis são massacrados. Os próprios polícias, símbolos da autoridade de um Estado que abandona os cidadãos à sua sorte, não se distinguem verdadeiramente dos delinquentes: também eles, a coberto da sua farda, desejam apenas exercer a sua vontade de poder sobre outrem.
Nesta peça reflete-se o lado mais obscuro do que se convencionou chamar a «cultura ocidental», esse Janus de duas faces: a face marcada pelo colonialismo, pelo racismo e que desemboca no nazi-fascismo e na ressurgência do neofascismo nos tempos atuais. Se encontrares alguém caído pela estrada, passa ao lado, pois nada tens a ver com o que é verdadeiramente humano, a solidariedade, o amor pelos outros do melhor cristianismo. Sempre que puderes explora a fragilidade de outrem como meio da tua própria autoafirmação, exercendo tanto a violência física, demasiado patente na peça, como formas de violência simbólica ou ideológica de natureza mais fina e requintada que, infelizmente, a peça tem em pouca conta. É esta forma de violência que se torna predominante atualmente, embora não exclua a outra, sendo certamente o seu substrato, e não o seu complemento. Também é esta forma de violência que está na origem da ascensão do neofascismo, embora nunca exclua a primeira.
Há que referir ainda que a «cultura ocidental», a que o texto introdutório do espetáculo faz referência, não se reduz a esta dimensão barbárica que irrompe nos períodos de crise social e política, como o atual e o período de entre guerras do século passado, embora mergulhe as suas raízes num passado mais distante que remonta a Platão, eugenista e defensor do tipo «racialmente puro» dos guardiões, a «casta» dos governantes-filósofos e dos guerreiros, sustentados pelo trabalho forçado dos outros. O Ocidente tem também outra face: é o «lugar» dos direitos humanos como direitos que são anteriores à constituição do Estado político e que este não só deve enquadrar, mas também necessariamente respeitar, como condição necessária da legitimidade do seu poder. Não se pode esquecer também que o socialismo nasceu na Europa ocidental e não na defunta União Soviética, onde revestiu a sua pior forma, o socialismo de Estado. Uma coisa é certa: as atrocidades de um Putin eslafóvilo e da sua horda de bárbaros com armas, que não pode ser considerada como um verdadeiro exército, exprime melhor a espiral de violência descrita na peça de Danan, do que considerações genéricas sobre uma «cultura ocidental» que, de acordo com o texto introdutório, continua a ser reduzida à sua primeira dimensão.
Uma palavra sobre a encenação: demasiado ensurdecedora, o que prejudica manifestamente o desempenho dos jovens atores que nem sempre se fazem entender. O espetáculo perde assim parte do seu impacto, embora acabe por recuperá-lo através de uma excelente demarcação e interligação das cenas que acaba por exprimir a questão essencial que o autor/encenador tem em mente: a espiral de violência e o vazio de valores onde tudo se confunde e nada se salva, sem escapatória possível, mensagem demasiado pessimista e até niilista que não partilho, mas que pode servir de alerta relativamente uma catástrofe social que se avizinha cada vez mais no horizonte cerrado da política contemporânea.
Joaquim Jorge Veiguinha