Estreou a peça Ajax (Regressos), de Jean-Pierre Sarrazac, uma produção do teatro da Rainha, encenada pelo Fernando Mora Ramos. É a 63ª peça para a qual concebi a musica ou o cenário acústico, quinta peça escrita por Sarrazac em que participo. Começou com a importante experiência que foi o Menino Rei, continuou com Envelhecer diverte-me, a Paixão do Jardineiro, a Morte de um DJ e prossegue agora com este Ajax, Regresso(s).
Regresso, também eu, com este Ajax, Regresso(s) ao Teatro da Rainha, companhia para a qual trabalhei em trinta outras produções, para além dos cinco referidos textos de Sarrazac, após um relativamente longo interregno. Regresso também com algumas sonoridades que me trazem à memória as minhas primeiras colaborações com a companhia.
Ao contrário da figura da epopeia Homérica ou do herói do drama sofocliano, este Ajax é um personagem que nos suscita arrepios. Nada parece capaz de apagar a sanha sanguinária que o faz correr. Tentar compreendê-lo ou dialogar com ele é o mesmo que falar com um junky ou um esquizofrénico. Não há hipótese. Resta, por mais duro que isso possa parecer, com coragem, encerrar este Ajax moderno num qualquer colete de forças.
Certamente que as carnificinas levadas a cabo, em modo clássico, nos tempos da Grécia Antiga não terão sido menos horrendas do que as perpetradas pelos assassinos das guerras balcânicas, em modo mais pós-moderno, de onde este Ajax parece emergir, ou da actual “operação especial,” claramente mais global, para onde esta leitura do texto de Sarrazac nos pretende agora remeter. Seja como for, de tudo isto fica a sensação de que já não há heróis que nos valham. Os últimos estão encerrados, sem culpa formada, desde há anos, por terem acometido a besta a golpes de caneta. Estamos em pleno império do olho por olho, dólar por dólar. Moribundo, mas ainda aos coices. A peça de Sarrazac parece, isso sim, dar-nos um retrato do absoluto desespero em que o mundo ocidental ou ocidentalizado caiu, que a tímida nota de “final feliz” não consegue desfazer. Saímos deste regresso tão ou mais desesperados do que entrámos. Com a “mentira da paz”, como refere o texto, mais clara perante o nosso olhar, do que nunca. A desafiar a nossa impotência.
A primeira leitura da peça remeteu-me para um universo sonoro que me trouxe ao espírito um dos meus heróis musicais, Xenakis. O som que corria na minha mente era como que um tributo a uma figura que admiro sem limite. A vida de resistente do compositor grego, a sua coragem e o horror da guerra em que se viu envolvido, tantas vezes sugerido, de forma superior, em várias das suas composições.
Ao prosseguir o meu trabalho, o tom de luta e resistência que a música de Xenakis evocava em mim, presente no vigor dos tambores, nas correntes arrastadas e nos pedaços de metal percutidos, arranhados e raspados, foi lentamente sendo substituído, apagado, à medida que os trabalhos de preparação foram decorrendo, pelos gritos dos abutres e por um coro de vozes desesperadas à procura de uma saída para o estado de barbárie humana, mais ou menos sangrento, mais ou menos surdo, em que a nossa civilização parece ter caído, perante o nosso olhar incrédulo. Que nem o tom musical mais ou menos colorido do falso final, antes do monólogo da Jovem Mulher e, sobretudo, do final surpresa conseguem enganar.
Não há regresso. A resistência passará, inevitavelmente, por outros modos de actuação.
Texto originalmente publicado aqui.