Encontrei recentemente num ensaio de Agustina Bessa-Luís dedicado a Kafka a ideia de um escritor que «não escreve para ser lido como escritor, mas como compositor», buscando acordos musicais entre ideia e palavra, descrevendo gestos que devem ser lidos como a música. A linguagem musical é a que mais convém ao absurdo, na medida em que confere à ambiguidade do som todo o sentido. O significado das palavras esfuma-se na sonoridade, o sentido perde-se no ar, decompõe-se, cedendo toda a lógica discursiva a elementos de decifração indefinível. Terá sido Samuel Beckett quem primeiro levou mais longe esta ideia de escrita-musical. No romance “Watt” a língua surge repleta de hiatos, a pontuação marca um ritmo muito próprio, espécie de percussão, as palavras puxam as palavras, o som de uma palavra leva a outra, o coro que a determinada altura se escuta reproduz um enigmático compasso que apenas pode ser lido como música.
Não por acaso, no “Teatro Impossível” de Álvaro García de Zúñiga (1958-2014) encontramos uma referência ao texto de Beckett: «Sam dizia maldito seja quem assina y Watt» (“Teatro Impossível”, Acarte, 1998, s/p). Na versão recentemente dirigida por Fernando Mora Ramos esta dimensão musical da palavra impõe-se com especial evidência. Não era sequer necessária uma arpa no cenário para constatarmos que na sala-estúdio do Teatro da Rainha assistimos a um concerto em torno da possível impossibilidade do teatro. Tudo gira à volta dessa impossibilidade, numa dança entre quatro actores (+ um vendedor de fúrias e beijinhos) ligados por jogos de palavras cruzadas que são o fio condutor entre nascimento e morte. No subtexto é precisamente esse o fio condutor vislumbrado, um ser nascente «excessivamente novo» que acabará morto. Esse ser nascente pode ser homem, pode ser palavra, será por certo a própria ideia de teatro.
Tudo começa com disparos na direcção do público. Mata-se o público para que nasça a ideia, esta assume, desde logo, uma desvinculação. Não será o público a determinar o nascimento da ideia, ainda que a ideia cresça na direcção do público. Haverá público para esta ideia? Não haverá? Pouco importa. O ser/ideia nasce esqueleto e vai sendo preenchido ao longo da peça, como que fazendo o sentido inverso de uma lição de anatomia. Não há um corpo para dissecar, há um esqueleto para preencher com nervos, músculos, veias, carne.
O “Teatro Impossível” de Zúñiga ensaia o divertimento do pensamento com a linguagem, servindo-se da língua teatral como da música se serviram os escritores-compositores. A composição que nos é oferecida mostra a linguagem a divertir-se consigo própria, reflectindo-se a si mesma. Como já alguém referiu é um sinal de pós-modernidade esta capacidade que uma arte tem de se reflectir, o poema que se questiona dentro do poema, a música que se pensa a si própria, a arte que é anti-arte, o poema anti-poema, o teatro que se constrói no fazer-se destruir. Podemos também chamar-lhe desconstrução: «Nenhuma personagem. / Nenhum palco. / Nenhum cenário. / Nenhum teatro. / Nenhuma palavra. / Nada». Prefiro, no entanto, o conceito de simulação. Como no desporto, o artista opta por ameaçar com uma intenção para seguir na direcção contrária, fintando o sentido e as expectativas do público. Daí que seja tão surpreendente o efeito gerado por um jogo que não se estabelece apenas entre as palavras, mas também entre aquele que as emite (suposto actor) e quem as recebe (putativo público).
As palavras jogam consigo mesmas, mas já não são meros jogos de palavras: essência é ser, ideia, aroma; tresanda, ou seja, recua, cheira mal. A multiplicidade de sentidos de uma palavra resulta no sem-sentido do texto, da comunicação. O sem-sentido é a impossibilidade, tal como o nonsense é a essência. Mas repare-se como há uma ética neste raciocínio, a ética que se opõe ao sentido único, que recusa o sentido único, uma ética da liberdade do pensamento e da linguagem, logo, uma ética da arte, do teatro: «E foi então que entendi, vi, percebi que nos restava uma voz inesgotável para andar à volta do nada dizer». Não podia ser esta frase um aforismo de Emil Cioran?
Jogam igualmente as palavras com os corpos de quem escuta, como quando a actriz oferece ao corpo a forma de um Y enquanto outro actor diz que a primeira letra que aprendeu foi o Y grego maiúsculo. A imagem é de uma beleza desconcertante, obriga-nos a olhar para a sala como um todo, percebendo o efeito que um som ali produzido tem num corpo acolá deslocado. Ou quando o corpo se inclina para que o actor fale em itálico, gesto simples, depurado, mas com forte resultado visual. Estas dinâmicas entre corpo e palavra outorgam à palavra um corpo orgânico, tornam o próprio corpo palavra. A linguagem transmuta-se, deixa de ser apenas metafísica, texto escrito, simbólico, debitado, passa a ser texto dançado. Por isso falamos de música e de dança quando nos referimos ao “Teatro Impossível”.

Henrique Manuel Bento Fialho
in Antologia do Esquecimento, 10 de Julho de 2018

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