Um teatro novo é um acontecimento. Nem todos os dias surge um, muito menos uma casa que fuja ao reconhecimento imediato, como acontece quando dizemos automaticamente que uma árvore é uma árvore, sabendo que uma oliveira milenar e um castanheiro não se confundem com um eucalipto de crescimento rápido. O que acontece é que proliferam eucaliptos como a má arquitectura, isto é, a construção desenfreada e caótica sem ela. Por isso um edifício pensado como espaço de criação e formação, espaço de busca de práticas de criação/fruição alargadas que criem um novo comum, uma dada socialização dos modos de relação com a cidade — assumidos num programa — é um caso raro: é o objecto de uma causa, que muitos querem marginalizar hoje em nome de formas de vazio mais adaptadas à velocidade dos tempos e a funções de animação decorativa, é o objecto da causa de um teatro de novo tipo, do teatro. É um objecto que resulta da sua longa história e da nossa pequena história em convergência e que, inscrito num devir artístico consciente, ocupa, onde acontece, uma posição central como acontecimento — é a produção de um acontecimento contra a lógica dos fluxos do mesmo, das repetições do passado como paradigma, negativo, dos bloqueios em que vivemos. E isso por motivos especificamente teatrais, de arte e de destinatários.
Muita coisa é sem finalidade, fluxo que resulta de máquinas engrenadas que produzem a realidade em que submergimos e de que o teatro se quer apropriar para escrutínio, crítica, opinião. A finalidade de parar o tempo e nessa suspensão permitir que o pensamento possa emergir, é própria do teatro — no cinema não acontece, nunca há aquela noção de que tudo pode ser suspenso. O teatro é um desligar do tempo no presente que corre e num dado espaço para que possamos observar o real não como vítimas, ou como passantes inconscientes, mas como pensadores potenciais.
Dizem que já tudo foi dito e portanto nada se pode dizer que crie nova compreensão, a própria compreensibilidade das coisas é devorada pela saturação dos universos do sentido. É o que leva muitos a dizer que tudo é uma entropia, que não sabemos para onde isto vai, valendo assim, apenas, apostar no irracional, ser parte de uma soma que junta forças para as desperdiçar contra um muro. Exemplos? Um grupo de “performer’s” entra num espaço levando jornais nas mãos, coloca-os no chão e urina sobre eles – aonde queriam chegar, dizer que a imprensa merece apenas o nosso desprezo? E a arte? Será urin’arte? Onde está o trabalho de uma dada linguagem que reconstrói o real e que o devolve legível de forma intensa? Tudo não passa de um desejo publicitário e narciso de escândalo, de espectáculo. O teatro é grego, o espectáculo romano.
Um edifício com características, externas e interiores, que seja o resultado de muitos anos de prática e de estrada, de mais de cem experimentações de escalas muito diferenciadas nas mais diversas cenas, salas e palcos, de reflexão feita com o fazer a que os corpos dos actores, dos encenadores, dos autores e dos técnicos deram corpo, de muito confronto com o impossível, com a má comunicação, com a má acústica, com o palco alto e desmesurado acima dos espectadores como se fora de outra classe social, de muita coisa falhada e outra exitosa, só pode ser, se tudo isto lá estiver, uma casa arquitectada, isto é, em que cada pedaço de espaço, cada ângulo a fruir, imaginado, sejam ao mesmo tempo familiares e distantes, não intimidem nem sejam convertíveis em usos que diminuam as potencialidades laboratoriais, de experimentar, de ensaiar, de pensar. É uma casa do exercício, vivida pelo exercício nos dois pólos, cena e sala, por práticas interdisciplinares numa conjugação perfeita no tempo e entre os espaços.
É o arquitecto que traduz tudo isto em volumetrias e acústicas prévias, de acordo com as nossas necessidades de criação e com as necessidades de apropriação dos espectadores: a nossa futura casa será uma casa do rigor, destinada a todos, um lugar de fronteira em que a sociedade se vem reobservar, ver ao espelho num espelho que deforma, quer emancipar, dar a compreender. Numa escala que é a que é, de câmara e ao mesmo tempo épica, o vazio da caixa aberta central abre para essa possibilidade de relação, a explorar, entre o íntimo e o político, o quotidiano e o histórico, o presente e o passado, o futuro.
O arquitecto é também o teatro e as suas exigências específicas. Qual a maior? Que a relação de tensão entre a cena e a sala seja intensa, capaz de silêncios concentrados, invulgares e de risos colectivos, de participação activa dos espectadores, o que não significa fazerem o pino, espernear, estarem disponíveis para uma tortura criativa qualquer ou produzirem numa ânsia fabril, como nos concursos televisivos, aquele tipo de aplausos e sorrisos por medida, pagos.
Disse Peter Brook, o director inglês, duas coisas: uma sobre o vazio — um espaço vazio é um modo de regressarmos a um teatro primordial. Qualquer vazio atravessado por alguém que outrem observe transforma-se num acontecimento cénico. Temos aqui três elementos, o espaço, o atravessamento e o observador. E, bem vistas as coisas, temos também o tempo do atravessamento. Este regresso à pureza inicial, a uma espécie de antropologia fundadora do teatral, é feito contra os arrebiques da talha dourada, o excesso de alcatifas e cortinados, contra os panos de boca sumptuosos e todos aqueles ingredientes visivos e rituais que marcaram um teatro aburguesado que está sempre a reemergir, o cemitério mantém-se em actividade.
Hoje, o que se faz por aí, é mais precário e caótico, desbundado, a indústria do entretenimento transbordou para todo os lados, fabrica todo o tipo de relações desqualificadas e desqualificantes, tomou conta de tudo, impondo o “game-consumer”, o comércio de todas as esferas do espírito, relações estabelecessem-se no seu todo dentro dessa dependência interactiva passiva — qualquer pequeno projecto, o primeiro passo que dá, hoje em dia, não é pensar teatro, é pensar marketing.
O vazio, o do título do colóquio, não será esse, é pelo contrário, aqui, o princípio da reconstrução de raiz de uma possibilidade de trabalhar o sentido. É isso que nos interessa e dentro disso o que, elaboradamente, venha a permitir a uns e outros, a partilha de um sensível — o da representação teatral — que faça emergir pensamento autónomo, invenção, como resultado da criação que é o que tentamos na cena — ensaiar é repetir a tentativa de criar e criar é repetir exaustivamente até chegar à variação inesperada e a uma dada densidade e ritmo das formas e acções.
A nova cena mistura criação e ordenamento enérgico do sentido no tempo e espaço, através das palavras criadas e ditas pelos corpos em relação dos actores. Esta contracena em acção dos actores encontra na contracena dos espectadores que reagem o seu motor anímico, as voltas de um sentido que é produção conjunta. Os espectadores também dizem o seu texto.
De silêncios também fala Peter Brook que, devo dizer, não é o meu guru, já lá vai o tempo deles, ainda bem e ainda mal, pois os mestres são essenciais e uma sociedade sem mestres é uma sociedade à deriva. De silêncios falava. Diz ele que há de dois tipos: o silêncio de chumbo, que oprime e é improdutivo, afasta do que seja sensível, destrói a possibilidade de um comum e fecha cada um dentro de si e o silêncio que resulta de um momento de concentração que cria uma comunidade, nem que seja de modo instante, justamente por via do silêncio partilhado por todos, nova cumplicidade. Este silêncio é essencial e abre as portas que o outro fecha.
Este espaço de que falamos, este silêncio qualificado e partilha do tempo, são partes desse laboratório de ficções por um futuro melhor, diferente, o lugar da experimentação das potencialidades de mudança deste real que transportamos no corpo, mudança histórica, que temos nas nossas mãos.
Não estamos satisfeitos com este mundo, nós que fazemos este tipo de teatro há décadas, sempre em busca de uma comunidade que actue dentro de outra que não o é, a sociedade global, para a tornar para nós, mais humana e solidária, uma sociedade de entre iguais, uma sociedade sem explorados nem exploradores.
O teatro que queremos fazer na nossa casa é esse, parecido com uma espécie de “democracia directa”, comunicativo dentro de regras de rigor que o livrem das contaminações do massivo com o seu cortejo de “atrocidades”, de insensibilidade relativamente ao outro, cultural e socialmente, de constante estetização da miséria e do massacre. No teatro que queremos fazer não cabe a exibição desenfreada do sangue para cegar o cidadão de impotência ou para “épater” o pacóvio de deslumbramento temeroso.
Bem vindos a um novo futuro possível que aqui anuncia primeiros passos, ao teatro novo e ao novo teatro que para vós vamos tentar fazer dentro de dois anos, mas desde já e desde um sempre que é nosso, trilhando esse caminho.
Fazer, eis a palavra, somos fazedores como dizia o mestre Mário Barradas.
E fazer é um pensar, um pensar que age.
Nota
texto da minha intervenção no Colóquio
Teatro espaço vazio e democracia
fernando mora ramos