PORQUE FAZEMOS A PAZ de Aristófanes
Por ser uma necessidade hoje. Como afirmou há uns anos um dirigente mexicano de Chiapas, vivemos em clima de 4ª Guerra Mundial, de baixa intensidade como se diz — e o que será isso ? — desde a segunda e não foi por acaso que a essa Guerra 2ª, mais sofisticada e menos corpo a corpo, se lhe seguiu a Guerra fria, bem mais quente do que aparentou, sendo essa aparência o rosto da diplomacia bipolar dominadora ao tempo.
Os conflitos no mundo não cessaram nem cessarão e o combate geoestratégico, como os militares gostam de dizer quando se fala de olhar e dividir o planeta pelas potências dominantes em zonas controladas, influenciadas, semi-controladas e “rebeldes” ao seu domínio, continua. A evidência atira-nos à cara os conflitos de expressão mundializada mais recentes — e quais não serão globais? — desde as atrocidades na Bósnia, no Ruanda, no Afeganistão, na Líbia, no Iraque, na Síria, no Curdistão, na República Popular do Congo, aos conflitos na Colômbia, ao cerco a Cuba, para não falar das, também de fim recente, guerras civis em Moçambique e Angola — e as consequências das guerras nunca terminam, pense-se nas desminagens, por exemplo, ou nas bombas enterradas ainda explosivas da Segunda Guerra que reaparecem nos sub-solos da Europa. São apenas exemplos e dados ao sabor do que conhecemos mais ou menos de ouvido.
Todos sabemos também que a chamada guerra tem nomes para além dos de guerra e guerra fria, como por exemplo guerra comercial e outro, muito actual, que é a guerra de fronteiras, guerra dos muros, da imposição de muros de morte. Ainda agora, a ler um comentário sobre a Guerra do Peloponeso, a última, se fala do projecto de um muro coríntio – proposto a Esparta pelos coríntios – para o estreito coríntio.
Um motivo maior desta escolha é, por outro lado, a chegada do Senhor Trump ao poder na maior super-potência mundial, os Estados Unidos da América. A sua visão belicista da resolução dos conflitos e a posição tomada de aumento do orçamento militar, assim como a defesa de nova corrida à sofisticação destrutiva do armamento nuclear — com muita tecnologia e ciência e cientistas e tecnólogos ao serviço —, configura a sua presidência como um retrocesso brutal da Paz possível, um regresso ao calão da guerra fria e à escalada da violência por toda a parte — veja-se o resultado de declarações suas na Palestina —, para não falar abertamente da possibilidade de eclosão mesmo da forma nuclear da guerra com a possibilidade de extinção da vida na terra.
A chegada Trump levou-nos a reler a peça que, por estranho que pareça, mantém, retirada a camada de poeira histórica mais localizada e referencial, para notas de pé de página, uma estranha — 2440 anos depois — actualidade. O desejo de Paz que Aristófanes manifesta na sua peça, é o mesmo, é o nosso desejo de paz, da Paz. E as razões são também as mesmas: a possibilidade de um regresso às actividades de criação produtiva — a agricultura era economia dominante e por isso o herói, Trigeu, herói de comédia, é um vinhateiro — em clima de paz, único clima capaz de dar forma a uma vida especificamente humana, de dar forma ao que no humano, na história humana, seja a realização do seu destino da terra: uma vida virada para o que ela tem de melhor, o amor e os prazeres, o culto da beleza e os prazeres do corpo, o prazer das palavras e da palavra, da festa, das realizações pacíficas e fraternas das comunidades humanas unidas pela mesma perspectiva de Paz, contra os fautores da guerra e das formas que toma, sejam comerciais, sejam diplomáticas, sejam de compartimentação do planeta em zonas com muros, sejam da expoliação de recursos alheios.
A visão da resolução dos problemas hj não passa por novas muralhas da China nem por futuros muros de Berlim, nem por muros na Palestina, zona mártir, nem por muros na fronteira do México.
Estas são as motivações extra-dramaturgicas, políticas e de dramaturgia externa também, como se disse a certa altura, da realização deste texto que começamos a ensaiar hoje no Teatro da Rainha.
E, claro, fazemos A PAZ de Arsitófanes, por ser a dele, inventor da comédia política e por ser puro prazer do jogo e por assim dizer, tão humana de conteúdos e formas quanto os nossos enormes defeitos, iconoclasta e reveladora de deuses tão mal humorados e venais quanto a psicologia humana possa revelar, verdadeiro carnaval político fora de época, já que a sua estreia será em maio, na Primavera – onde andará ela? —, no Largo da Copa, perto da Praça onde surgiu o velho Hospital Termal, de Dona Leonor, com o seu moderníssimo Compromisso a detalhar os modos de funcionar e o Serviço Público – de que fazia parte, o teatro de Gil Vicente e essa bandeira que foi o seu, curto, São Martinho, auto da fraternidade e da compaixão, da solidariedade.
fernando mora ramos