PARA QUEM IMPORTA O TEATRO
neste início de 18
agora que se fala muito
em exportá-lo este ensaio em embrião

da inteligência intuída do mundo
— ao beco de sentido sem saída

1 Pensar teatro não é pensar sobre nem pensar no, é um modo de pensar que radica na linguagem do teatro, um pensar que é um produzir sentido em cena através de uma linguagem específica que os corpos dos actores materializam em presença simultânea com os espectadores. Esse pensar teatro, sendo uma linguagem físico-textual, espacial, foi-se constituindo como uma dramaturgia, um inesgotável acervo de textos que experimentaram formas e experimentam na relação com as “arquitecturas do jogo cénico”, possibilidades sempre diferentes de jogo dos corpos com os espaços, relações cena sala ao longo dos tempos — tanto a cena se torna complexa e cheia de objectos, como se torna nua, tanto a sala se amplifica e muda as posições dos corpos espectadores entre si, ao ponto de se observarem uns aos outros nas reacções, como se torna absolutamente frontal, como diminui de escala e se aproxima da escala de câmara. Nessa dramaturgia, no interior dos textos, os corpos estão a agir em potência, mesmo quando essa acção é a imobilidade dinâmica de Beckett com os seus corpos encarcerados, colocados em condicionamentos vários, dispositivos de significação cénica — a acção não é nem gesticulação sem gestos, nem movimento próprio de uma energia em busca de uma catarse psicológica para consumo próprio. E essa dramaturgia reinventou-se constantemente em resposta aos estímulos que foram surgindo, desde a invenção da sala fechada à electricidade, da cena circular em U, enquanto cena/sala, à frontalidade pura e dura, do anfiteatro ao palco elevado sobre a sala, das mansões medievais ao teatro íntimo de Strindberg, do teatro maravilhoso fragmentário e mítico da Rubena feito na sala do palácio à “peça bem feita” de um teatro imerso na escuridão, encadeamento lógico fabular virado para um clímax e em que cada acção que se segue depende de uma anterior a que responde e que na escrita se determina, por elegância e razoabilidade estrutural, um tamanho e equilíbrios, tipos de personagens, uma mecânica dita orgânica que fecha a realidade na estrutura e serve a ficção como ilusão. Mas também de Ésquilo a Buchner, de Brecht e Beckett a Crimp, da tentativa de abarcar toda a realidade numa estrutura coesa ao fragmento que abre sentidos para uma dimensão do que seja global.

2 E essa linguagem, o teatro, que Calderon chamou de “grande teatro do mundo” — o teatro é esse grande teatro do mundo — corresponde ao que muitos dizem que Shakespeare fez, apelidando-o de CRIADOR por comparação com um poder divino, pois as suas obras são, equivalem, a um duplo do mundo. Nesta perspectiva o criador DRAMATURGO é um demiurgo, devolve-nos uma integridade do mundo, por certo concisa e filtrada, complexa e múltipla, profundamente contraditória, que nos permite ter uma visão do todo no que seja esse grande teatro do mundo que se inicia ficção com a cena vazia no interior das cenas conhecidas (grega, corrales, italiana, isabelina, em boa verdade dispositivos dessa potência de integridade técnica-espacial de um “dar a ver o mundo ao mundo presente”) — como se esta fosse o amplo planeta nu de uma foto cósmica em que os espectadores pudessem ser uma constelação de estrelas — já em Gil Vicente os espectadores são, na sala do palácio onde ocorrer o auto, planetas e estrelas.

3 E essa dimensão complexa, capaz de devolver essa integridade contraditório do MUNDO em fluxo, em andamento, num tempo e no tempo, nos tempos, é expressa, construída, pela natureza intedisciplinar da linguagem do teatro, nessa estrutura que em cena os corpos escrevendo revelam.

4 A sua especificidade, que comporta uma dimensão primordial, linear, a corresponder a um modelo primitivo — que aqui quer dizer simples, elementar, “alguém observa alguém a fazer alguma coisa” — tem, ao longo dos tempos, “evoluído” para um modelo que a integra hoje nos aspectos actuais da sua inter-disciplinaridade constitutiva. Ela é fundacional, pois já nos gregos, tanto antes da pedra como depois da pedra, nos deparamos com canto e dança, texto, voz e corpo, espectadores e actores (antes da pedra mais indistinta a sua articulação) mas também com luz e arquitectura, dispositivos de cena, como a certa altura o “deus-ex-machina”, guarda-roupa, máscara, movimento em cena, organização de corpos em espaços, espaço de espaços, coro e “cena dos actores”, plataforma olímpica, nas alturas.

5 Assim, estamos perante um modo de associar disciplinas — que depois se autonomizaram também — que surgiu ligado e que ao longo do tempo se foi re-associando, dissociando, com ligações e modos de intensidade dessas ligações que foi sendo e é diverso, até se chegar, por exemplo, à radicalidade do palco nu na austeridade de Copeau que é, obviamente, um voltar atrás que avança, uma higiene que limpando do desnecessário e acessório comercial, contaminação pelo fora do teatro e relança o sentido como um objectivo essencial do trabalho do actor.

6 Há portanto uma relação entre o teatro duplo do mundo de Shakespeare — que está na obra que por sua vez está no dispositivo isabelino, na forma do edifício interior, no aberto do tecto à luz do dia, na disposição dos espectadores que fecham um círculo exterior à volta do palco que vai até à parede de fundo deste, etc. — e a complexidade do teatro como linguagem que estabelece a sua natureza constitutiva.

7 Isto é, o teatro é essa complexidade e os modos da sua articulação interdisciplinar específica ao longo dos tempos, integrando na sua perspectiva os meios técnicos que se vão associando ao que é. A electricidade cria-lhe novas possibilidades, mas o teatro anterior à electricidade conhecia a aurora e a noite, a manhã e a tarde, jogava essas ambiências no jogo das palavras usando ao mesmo tempo a luz do dia.

8 Do mesmo modo o teatro grego usava o pôr do sol de um modo específico, o que significa que aparentemente o integrava como um projector de efeito especial — pois, eu sei que ficciono — pondo o piano de luzes nas mãos dos deuses, instalados na sua régie olímpica.

9 Representar, que é uma das dimensões do teatro, a sua activação cénica, pressupõe um presentar. Mas este presentar que, em boa verdade, será um representar à primeira, isto é, um presentar sem o trabalho de reelaboração de um dado presente — um presente ausente, que é da ficção e que é memória feita presente quando se lê, pois não há presente sem história ( o presentismo é uma ilusão superficial, algo que nega raízes e filiações, causas e efeitos, para vender uma leveza que não tem — a publicidade tenta isso permanentemente, por vezes com tanta leveza que enjoa — não há mediterrâneo sem massacres e já Tucídides o escreveu em páginas brilhantes acerca do cerco de Siracusa )— está para o teatro como a natureza está para a sua expressão espontânea, expressiva e predeterminada pela sua genética específica.
É o re que permite ao presentar que este se elabore criticamente e que, por via do treino e da arte — que é um arte-e-fíccio, ofício ficção — se dê a “ouver” com a intensidade orgânica, corporal, dessa reelaboração em que a razão participa, tanto quanto a intuição inteligente. Não existe aliás nenhum presentar que possa ser a expressão absoluta de um criar que brote do corpo e da voz sem intermediação do corpo como instrumento — e portanto como instrumento que resulta de um treino, quanto mais não seja porque repetir a presentação é re presentar — e de um texto prévio, seja ele constituído pelo guião dell’artiano, pelo improviso que improvisa a partir de dados sempre pré existentes mesmo que convocado no instante (cada sujeito é um texto mais que imperfeito), seja um grande clássico.
Mas, para além disso, na relação entre a activação imediata de um desejo de presentar se convocam zonas do cérebro — e do corpo — que correspondem a uma genética que integra desde logo dimensões emotivas e sensoriais que têm memória específica, neuronal. Não existe portante nenhuma espontaneidade zero, nenhum acto criativo feito do nada, como que produzido no instante como o seu próprio absoluto. Este raciocínio pretende colocar as ilusões de um criacionismo radical no seu lugar verdadeiro — a publicidade tem também uma ambição criacionista a cada spot — e reafirmar que o treino — e a repetição portanto — são os únicos modos de acesso real ao conseguimento do artístico.

10 É Damásio que fala de sentimentos como consciência e portanto de um adquirido via genética que tem expressão comportamental através dos sentimentos — diferentes de sensações e emoções, mas permanentes, modo permanente de um juízo positivo ou negativo.

Diz ele:

Três coisas diferentes. Sensação é o que permite detectar a presença de um estímulo – e que as bactérias e as plantas também têm – e que gera uma resposta. Depois há certas respostas mais complexas. Em organismos simples, se tocar na criatura ela retrai-se. É a mesma reacção que terá se alguém a assustar, uma reacção emocional. Há reacções conservadas ao longo de biliões de anos e que são emocionais, reacções de movimento. O centro da palavra emotion é motion. Se alguém lhe perguntar a diferença entre emoção e sentimento agarre-se à palavra motion; o movimento está do lado das emoções e se está do lado das emoções está-se do lado daquilo que é visível para os outros. Sensação, no seu básico, não tem nada a ver com a emoção propriamente dita. A emoção é uma reposta complexa de movimento em relação a um estímulo que foi sentido e depois há o sentimento, que é a experiência mental daquilo que se passou no organismo quando houve sensação e emoção. São três graus. Um é extremamente simples, outro já é mais complexo, em que há uma resposta, e ainda um outro em que há o apreender consciente e mental daquilo que foi a resposta e que se passou no organismo. São mundos diferentes.

[…]

Cada vez mais estou absolutamente convencido que não é possível distinguir tecnicamente sentimento e consciência. O sentimento, muito possivelmente, foi o princípio da consciência do ponto de vista evolutivo. O sentimento com a sua natural subjectividade e tudo isso se estendeu a outras subjectividades: subjectividade do que está no exterior – eu tenho subjectividade em relação a si neste momento, mas também tenho subjectividade em relação ao meu interior. Por exemplo, sei neste momento que estou um bocado cansado, fiz uma viagem de 15 horas e estou fora da hora em que deveria estar. Tenho essa subjectividade. E tenho a subjectividade em relação a si, às paredes desta sala, ao que estou a ouvir atrás de mim. O que temos é uma grande possibilidade, muito rica, de juntar subjectividades dentro da nossa mente. A nossa mente é toda feita de subjectividades.

[…]

Tudo é útil, umas coisas mais do que outras, mas a literatura é extraordinariamente útil porque é uma entrada muito rica na mente, uma entrada que utiliza a vida subjectiva, os sentimentos. É muito curioso, quando se olha para as humanidades de uma forma geral, e para as artes vê-se como têm sido laboratórios de estudos.
[…]
E a literatura tem sido um grande contributo. Quando me perguntam qual é o maior cientista de sempre respondo: na minha área, é Shakespeare.
Está lá tudo?
Praticamente tudo. Pelo menos esboçado. O que se tem é de desenvolver. Quer sejam as peças históricas, as tragédias ou as comédias, a própria poesia. Praticamente tudo aquilo que interessa, todos os grandes temas, estão lá. Entre as milhares de coisas que gostaria de escrever – se calhar não terei tempo –, seria fazer qualquer coisa com a neuro-ciência ou a neuro-biologia cognitiva vistas através do Hamlet e do Otelo. O Hamlet é praticamente suficiente. É tão rico e está tão cheio daquilo que conta… E talvez meter o Falstaff pelo meio para ficar mais completo.[risos]

11 Dizermos que o corpo é o modo de fazer teatro activando sentido em cena, é dizê-lo portador dessa dinâmica de sentido, é portanto nuclear. O corpo é o sujeito da acção. O sujeito da dinâmica da acção, das mudanças não só de percepção do sentido que vai reactivando, agindo, daquilo que se passa e se segue como narrativa, mas também da própria inteligibilidade do todo para o qual chama a atenção, já que a cena é complexa e joga essa inter-disciplinaridade de modos que estabelecem diferentes valores de intensidades enérgicas no próprio espaço do “ouver”, a caixa de cena ao mesmo tempo que a caixa de sala, pois são um todo.

12 Quando dizíamos que representar era uma das dimensões do teatro, queríamos dizer que a outra era a presentificação dos espectadores. Estes só representam na medida em que as suas acções/reacções aos complexos estímulos da cena, ao seu complexo estimular-inteligível-legível, é também referido a uma dimensão identitária, pela experiência dos sentimentos que Damásio refere e que são por assim dizer uma biologia com história própria em cada um de nós, que organizam essas subjectividades privadas que se manifestam nas emoções públicas. Não é algo elementar mas sim justamente aquirido por cada um e pela genética de milhões de anos do humano, da espécie. Em qualquer performance, dada como absoluta novidade, isso manifesta-se, o seu eixo de sentido tem um texto anterior, de uma complexidade bio-cultural sem definição possível de tempo preciso e que em tudo estará aquém dessa elaboração das subjectividades que reporta à criação e se relaciona com as humanidades, a literatura — e a referência de Damásio a Shakespeare tende a estendê-la ao teatro: Shakespeare não é, de todo, literatura, nem é possível lê-lo na ignorância da sua dimensão cénica específica, tanto a que na escrita joga as implicações técnicas, de espaço e actuação, como as que desde logo são produzidas com as condicionantes — o que limita, liberta também, é uma luta de libertação o uso do condicionamento, seja espacial, seja físico — do dispositivo isabelino.

13 O teatro é uma língua, como uma língua e se na língua as unidades de sentido vão da frase à palavra e ao monema, ao fonema, e a outras formas de expressão marcadamente oral e até averbais, no teatro essas unidades de sentido partem do corpo e das suas potencialidades de produção de sentido, do controlo gestual à voz, da unidade desses elementos, do uso dos braços, da face, de todas as partes do corpo e daquilo que resulta da relação entre corpos no espaço e que é de ordem plástica, a um tempo, e comportamental, num outro tempo. É no corpo que o motor do sentido mora, está alojado.

14 Todas as outras formas disciplinares de expressão autónoma são menos complexas e nessa medida menos capazes de duplicar o mundo, de serem esse “teatro do mundo”. Marcadamente, as que não usam a voz e a palavra. Têm potencialidades fortíssimas que lhes são específicas, mas estão longe das potencialidades que Damásio refere em Shakespeare, por exemplo.

15 Também pela via disciplinar autónoma, além de se exercerem formas particulares, com um ângulo de abordagem dos reais e das subjectividades — que são tão reais quanto o real, como aquilo que é virtual — particular, se tende a pela via particularista-unilateral a expressar formas que não o contam mas pelo contrário o expressam, isto é, muitas vezes ficam aquém até da produção de uma compreensibilidade aberta, em resultado do afunilamento que é esse unilateralismo.

16 Também a via fragmentária — numa outra linha de apreensão do mundo mais próxima da montagem cinematográfica, que joga a elipse e o processo dissociativo/associativo de modo fecundo — a que vem de Woyzeck, duplica de algum modo o mundo, já que se articula com um todo que refere na sua parcialidade fragmentária, que no fragmento é lançado como complementaridade inteligível. Assim nem tudo o que é parcial é unilateral, isto é, pratica no beco o sentido sem saída. O que acontece quando o particularismo é de afunilamento, dá a árvore como se fora a floresta, visão que acontece muito na vida e é fechamento. O que não é a defesa de uma abertura que se desdobre infinitamente ao ponto de se tornar charada, pois abertura significa abertura para, em direcção a, janela como agora se gosta. Ora essa abertura é por certo, no teatro, a forma própria teatral de abrir o real revelando-o — a imagem de um abridor de latas é canhestra, mas ajuda um pouco pensar nela —, seja no mais oculto, seja no mais evidente e cegante pela proximidade que opacifica justamente, no mais correlacional, no mais particular, no mais integral e inter-relacional. A multiplicidade do que é diverso e do que é particular e o todo são o seu destino como interrog(acção) em acto, pensamento emergente criado pela acção dos corpos em cena na sua relação com os corpos na sala — a mesma caixa visivo-acústica, pontos de vista em jogo que uns, chamados actores (autores, encenadores) elaboraram para outros, chamados espectadores (assembleia, razão de um comum e absoluta singularidade, individualidade, grupualidade).

fernando mora ramos

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