Os Míseros | Gil Vicente | Encenação e montagem de fragmentos vicentinos de Fernando Mora Ramos

S.N.S. | Henrique Manuel Bento Fialho

Os Míseros – Prantos, Lamentos, Loas e Pregões é o resultado de uma montagem de textos vicentinos – nela encontramos quadros do Auto da História de Deus, o monólogo Pranto da Maria Parda, quadros da Romagem de Agravados, do Auto das Fadas, da Farsa de «Quem tem Farelos?» e do Auto de São Martinho, seguidos de S.N.S., original de Henrique Manuel Bento Fialho com conexões ao Auto de São Martinho e ao Livro do Compromisso.
Este regresso a Gil Vicente – a Rainha de quem temos o nome é Dona Leonor, mecenas de Vicente – segue um princípio: depois da queda provocada pelo pecado original – que condena Eva e Adão à humanidade – uma série de desgraças atropelam-nos constantemente, da chegada da morte, à condenação ao trabalho, aos males naturais, o frio, as guerras pela sobrevivência, etc. aos quais se somam os males sociais – a corrupção, a vaidade, os enganos. O Estado, ora pela via política, ora pelas armas, reprime os de baixo. Condenados às hierarquias, arrumados em classes sociais, os homens estão todos sujeitos à morte, mas nem todos passam a vida nas mesmas condições.
Se o homem está sujeito a tamanhas provações depois de pecar, não será a vida o verdadeiro inferno? E não o será especialmente para os mais pobres e desgraçados? No texto vicentino, com ironia sátira e prazenteiramente diabólica, Vicente descreve esse inferno. Míseros é, assim, o périplo pelos males que assolam a humanidade, mas, sobretudo, pelos males que os de baixo sofrem irremediavelmente. Para estes parece só haver pobreza, doença, desgraça, dificuldades e dor. Estas personagens que povoam os textos vicentinos espelham a efemeridade e fragilidade do homem, cujo destino é ser pó e cinzas.
Nesta sequência cénica veremos passar diabos, sempre activos no mal que imprimem à vida social, Adão e Eva caídos na desgraça, a bêbada Parda, um escravo fugido, dois proletários do farelo, uma feiticeira Pereira incompreendida no seu mister e um mendigo sem nome. São estas algumas das figuras que Gil Vicente escolheu para relatar a desgraça da condição humana e que perfazem uma galeria de desprotegidos e sem abrigo que continuam até aos dias de hoje.
O que pôde ter atenuado este grau de desgraça? O projecto de Dona Leonor e a criação do Hospital Real, capaz de oferecer um verdadeiro serviço público, instituindo o tratamento e a cura dos pobres e chagados como aparece no Compromisso regimental da instituição. Esse será o ponto de partida para a segunda parte do espectáculo, intitulada S.N.S., da autoria de Henrique Manuel Bento Fialho. Retrato contemporâneo de outras epidemias entretanto dominantes, tanto pandémicas quanto da ignorância que acompanha os modismos e cegueiras sazonais, S.N.S. volta a temáticas locais e revisita a fundação do Hospital e, com ele, a da cidade, que surge numa atmosfera de caridade. O que significa hoje ser solidário? Como sê-lo num ambiente social promotor do individualismo e do egoísmo exacerbado?
Infelizmente, desde Gil Vicente até à actualidade, a pobreza, a miséria, a morte estruturada socialmente, são males planetários para os quais a globalização não só não tem dado resposta, mas, pelo contrário, tem contribuído.

Origem das imagens que acompanham a iconografia do espectáculo da direita para a esquerda:

A Extracção da Pedra da Loucura, Hieronymus Bosch, pormenor (Museu do Prado, Madrid)
Juízo Final, Hieronymus Bosch, pormenor (Academia das Artes de Viena)
Juízo Final, Hieronymus Bosch, pormenor (Academia das Artes de Viena)
Jardim das Delícias, Hieronymus Bosch, pormenor (Museu do Prado, Madrid)
As Bodas de Canã, Hieronymus Bosch,(museu Bojmans Van Breuningen, Roterdão)
Juízo Final, Hieronymus Bosch, pormenor (Academia das Artes de Viena)