I
1. Uma política cultural é uma ordenação. É uma estruturação de forças, energias e estruturas de acção criativa nos territórios. De modo implantado, nada eventual, evenimencial. Sem essa ordenação não se pode falar de gestão. A gestão de uma não ordenação é um modo de gerir a sobrevivência de casos, do imprevisto, é o desenrasca quotidiano, é a desvalorização real de profissões, estruturas e instituições infelizmente mais toleradas que desejadas pelas governações, tidas como despesa, mesmo que insignificância orçamental — quando a verba no todo se mantém nos 0,2 qualquer coisa % do orçamento de Estado, de que falamos? Refiro-me em particular ao teatro, mas poderíamos falar de outras áreas.

2. Qual tem sido a resposta dos governos: meter tudo no mesmo saco, industria criativa e criação, património e entretenimento, consumo massivo para percentuar rankings e literacia, economia e democracia. Não são a mesma coisa: a dimensão cultural de uma democracia não é a economia das suas indústrias criativas misturada com tudo o que sejam eventos de todo o tipo a surfar as ondas mediáticas, é outra coisa. A economia das artes de criação, do livro, do património, da relação entre passado presente e futuro é uma outra coisa.

3. A questão? A potencialidade das artes, como força de transformação cultural de um país no sentido da emancipação dos seus cidadãos deveria fazer com que os “gestores” da democracia a entendessem como determinante da qualidade da democracia, como seu sentido e substância. Isso significa financiamento adequado e não sub-financiamento, ordenação estruturante, generalização dos ensinos artísticos num quadro autónomo e convergente com o ensino geral, determinação concreta dos papéis das artes nas suas potencialidades e funções sociais, como serviço público, definindo-se aí o papel dos criadores e estruturas e os modos de fruição das artes junto das comunidades destinatárias— uma coisa é um pintor solitário, outra a criação operática, o teatro, o cinema, artes de colectivos artísticos integrados.

4. Quando se diz que os portugueses deviam conhecer Camões e Vicente, Seleuco e Rubena, fruir presencialmente Shakespeare, Medida por medida ou Ricardo III, temos de saber de que estamos a falar, onde isso começa e acaba, por onde passa. Experimentar Beckett e Brecht na escala das suas criações Arturo Ui ou À espera de godot, é diferente de uma performance de rua que nos diz que a galinha de cristas altas não é o cão de Pavlov, mesmo que habite o mesmo reflexo condicionado e todo um déja vu mental respigado.

5. Poderemos falar de gestão se os impactos nas realidade forem programados como interacção entre manifestações artísticas entrosadas como vivência de todos e partilha de sensíveis como modo de vida comum. Podemos falar de gestão como dinâmicas de fruição das artes e do conhecimento das suas linguagens pelas comunidades — o que tem a ver com a componente pública artística que a democracia deve entrosar como serviço público, respiração qualificada. Só nesse mergulho da sociedade e comunidades potenciais nas linguagens das artes, os poderes transformacionais das artes podem agir por dentro como efeito placebo profundo — aqui o virtual é resultado real —, verdadeira “panaceia”. Enquanto não são a vivência quotidiana da experimentação não têm esse impacto, esse gerar um outro devir contra o devir que se faz na não ordenação, na entropia, no deixa-andar ultra-liberal. Há um deserto cultural no meio da abundância ilimitada do mercado: é o do tempo que não há para ler fundo — ler em sentido amplo, modos de ver — são os meios de produção criativa e a orçamentação devida que não existem, é o de saberes que se perderam e de regiões em abandono, de decréscimo da população e do fim de serviços públicos, mas principalmente da não invenção de um futuro. As sociedades não têm de se conformar aos dogmas da economia da dívida e do financismo, a economia tem de servir os desígnios da emancipação e autonomia dos cidadãos, da sua liberdade livre e essa é cultural, vive de ser pensada e polemizada, é no fogo crítico que a democracia se fortalece como democracia, isso é cultura viva. O que sucede hoje na Europa é uma regressão de tipo xenófoba — a abertura ao outro é uma questão de diversidade cultural intrínseca, todos nós somos mestiçagens.

II
Falando do teatro o que significa uma ordenação? Cobrir o país de um ponto de vista geográfico e demográfico de estruturas de criação capazes da totalidade das artes integradas que o constituem. Um centro dramático não é uma companhia teatral, é um complexo cultural com capacidades artísticas, administrativas, de gestão, de formação, de divulgação, de digressão e de atracção de um universo de espectadores que se transforma, pelas práticas do espectador, uma escola aliás, numa comunidade específica entre outras, a dos partidários de teatro, da vida. Essas estruturas movem-se em torno da criação. Da criação de autores do património universal — Ésquilo, Aristófanes, Eurípedes, Sófocles, toda a tradição medieval, autores como Molière e Marivaux, Gil Vicente, e falando do maior, de Shakespeare, autor, como sabem, muito informado da cultura greco-latina, de contextos de ficção italianizantes — Otelo e Romeu e Julieta. Isto para chegar ao génio dos contemporâneos e clássicos contemporâneos, a Pirandello e outros. Mas o teatro, em revolução permanente, é mais que isso, pois a forma referida das suas estruturas é a forma de uma universidade ágil, não burocratizada, forma própria de contrariar pela positiva uma revolução das aprendizagens que se está a dar desreguladamente por via dos média e da internet. O acesso às coisas tem de se qualificar, morre-se de abundância informativa, de não saber que escolher, de se ser alvo, manipulado em vez de criador, formatado em vez de emancipado. É Antoine Vitez que fala de uma arte elitista para todos. É uma boa consigna. A fruição das artes são experimentações, o fruidor é um experimentador. Todos sabemos que os prazeres vivem de tempos de duração que se sonham prolongar, da leitura à experiência erótica. E que esta vida do descartável e dos pacotes de vida consumivel são formas de circulação do dinheiro ditadas pelo mercado. A arte, ao contrário da publicidade, não mente, polemiza, desvela, radicaliza, propõe, ataca, defende, posiciona-se, não busca lucro, antes a humanidade e seus sentidos, é crítica e busca a crítica, é pensamento em acção.

III
Agamben fala-nos de crer e de credores, de crédito, que vem da mesma etimologia e da aura que se criou em torno do valor—dinheiro. Aquele que é contrário e diferente de tudo o que nos vendem é do contra, ser contra o mercado ou pela sua regulação é heresia. Quando se fala de sociedade do hiperconsumo e do controlo não se está a falar de uma espécie de prisão global, de estarmos todos vigiados e fichados das mais diversas formas, de que cada gesto nosso é policiado? A criação não será o seu contrário, com a sua perspectiva não últil nem instrumental?

IV
Um ordenação é entretanto uma hierarquia que de alguma forma preexiste. Um país sem teatro seria uma aberração. Dois teatros nacionais não chegam. Os dez milhões de portugueses são tão cidadãos quanto os habitantes dos centros históricos de Lisboa e Porto. Não se sustentam estruturas com apoios de 100.000 euros — isso é como colocar andaimes de ferro para uma fachada não cair, não recupera nada. Esse valor, extraídos os impostos e despesas de funcionamento, vai para metade. Qualquer tolo administrador de um banco ganha mais do que isso num mês. Estabelecer prioridades é necessário. A meu ver, as artes que o teatro integra, pelas suas potencialidades sociais e educativas, por ser pedagogia enquanto teatro, pelas suas virtudes organizacionais e por ser uma arte duplo do real e nessa medida uma aferição deste como um todo, é um horizonte de libertação possível. E também pela sua facilidade de radicação no terreno — e há mais de 30 escolas de formação teatral de nível secundário, politécnico e universitário no país, com centenas de raparigas e rapazes a serem lançados na vida do trabalho sem estruturas que os empreguem minimamente. E chamam-se escolas de teatro, não se chamam escolas de novela. E por muito que os curricula se centrem cada vez mais numa espécie de exibicionismo corporal os textos lá vão resistindo e marcando. Há que reflectir nisto.

V
O que temos de fazer tem entretanto de fomentar fluxos de energia nas fronteiras da identidade, do cosmopolitismo e universalismo, pôr em interacção dinâmicas num comum assumido como projecto. Teremos de olhar a língua como uma riqueza única, como um património vivo diário, uma cultura de culturas. A sua subalternização, o uso de um registo cada vez mais monossilábico e curto de extensão vocabular, assim como a sua adulteração pela chuínga falante que mistura palavras de raiz inglesa em tudo, é mortal para as cabeças dos falantes e para a qualidade da nossa vida colectiva. Pensamos na língua mãe, as outras são de “contacto comunicante”, não têm o fundo que nos permite saber quem somos porque somos na própria língua. Porque razão reduzir a língua ao estatuto de um semáforo?

VI
Em cada cidadão há um criador potencial desde cedo, vive na língua que balbucia, em cada criador há um cidadão em potência. São essas potências que existem em cada um e na comunidade como relações tecidas nestas dinâmicas, que podem construir um país longe do fechamento nacional e da globalização devastadora. Um país identifica-se, uma cultura regional, universal, é identificável, mas será difícil perceber isto quando se submerge diariamente numa cultura hegemónica de matriz anglo-saxónica pela via da indústria dita cultural – ideologia, digamos — e do mercado. O que faz os dias é também a desordenação ambiental, a obsessão da bola como novo circo de massas, o petróleo que na costa é nova árvore das patacas, o trânsito a invadir as cidades a um ponto de saturação entrópica, a pobreza que não termina, as artes que não contam, a demografia negativa, a turistificação que esmaga os centros históricos — em Veneza há um habitante por cada seiscentos visitantes, etc. O que é bom, supostamente, para as contas públicas, é péssimo para o bem comum. O desprezo do que seja a democracia enquanto expressão da vitalidade crítica das suas potencialidades culturais herdadas, praticadas e permanentemente inventadas, do património e criação num abraço profundo, traz à vista a nossa própria tragédia.

fernando mora ramos

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