TEATRO DA RAINHA | TRIBUTO A JOSÉ AFONSO
José Afonso é mais que um capitão de Abril, é um libertador de consciências. A sensibilidade é, como se sabe, um território de máxima ambiguidade. No que toca à sensibilidade artística é o reino da ausência de um ponto de vista, de um posicionamento e vai a par com aquela vaga noção de que em matéria de gosto cada um tem o seu. Como se sabe não é assim. O gosto educa-se e quando ele é apenas educado pela força das estruturas de conformação das criaturas, da escola à família, hoje forças secundárias face ao Grande Educador televisão, logo se percebe que quem gosta, gosta do que pode ou gosta do que comeu, por assim dizer. Neste particular José Afonso é um caso paradigmático, a sua sensibilidade, o que transportam as suas canções e poesias como mundo e singularidade, introduziram na cultura portuguesa contemporânea algo de disjuntivo e vital. Desde as canções de amor, referidas ao amor cortês dos cancioneiros, à marrabenta moçambicana, passando pela incursão surreal no imaginário popular português, assim como a prática do “desvio” de que é um exemplo claro a canção “Os vampiros”, um falar ao lado para falar da coisa, tudo este poeta da voz tocou com magia melódica, ritmo vital e subtileza popular e erudita – ele é um representante da divisa “Elitário para todos” que Vitez, o encenador francês, um dia escreveu.
Tocou também o teatro, sendo conhecida a incursão brechtiana, na Beira, em Moçambique, realizando as canções de “A excepção e a regra”, peça didáctica de Bertolt Brecht, esse desmistificador do Grande Costume, o tal que sempre afirma que “as coisas são como são e assim serão” e que o senhor Keuner, essa figura dialéctica, sempre desmistificou, sendo célebre a anedota: o senhor está na mesma, disseram. O senhor Keuner corou.
Na realidade José Afonso é para nós um alimento constante, uma sombra que luz, um de nós, aquele que procurou a fraternidade na terra, o que lhe trouxe engulhos, mesmo uma ligeira mania depressiva, que a Velha Senhora impunha ao expandir o medo, essa doença que o cantor sempre quis expulsar de cabeças e corpos. Contra o medo, eis um lema. Medo que anda aí de novo, a espreitar brechas possíveis, a tornar-nos bem comportados, passivos, mortos.
Fura Fura, iniciativa do Teatro da Rainha com o apoio da câmara Municipal de Caldas da Rainha e a colaboração de Helena Afonso, filha mais velha do Zeca, pretende isso: abrir brechas, cavar na ferida desse silêncio feito de tantos décibeis que hoje impera, ruído que oprime, um sentido que vitalize novos caminhos do desejo, caminhos que possam ser irmanados.
Como a toupeira: fazendo e desfazendo galerias, longe da luz mas perto das mentes, lá onde um clic desperta nova vida, para que um dia a derrocada se faça a favor da verdadeira liberdade, aquela que permite a subjectividade, o gosto informado, o diálogo consistente, a democracia qualificada. Contra o circo romano imperial, esse em que os vampiros que despedaçam os indefesos da terra têm capacetes com visão nocturna.
FURA FURA integra concertos de três universos de criação diferentes, que fazem de José Afonso a referência constitutiva de experiências muito diversas, o que aliás diz muito da plasticidade da sua extraordinária intuição harmónica:
Mezzo Ensemble – no dia 25, com Luísa Ortigoso, Carlos Azevedo, Paulo Neves, Couple Coffee – no dia 26 com Luanda Cozetti, Norton Daeillo, Sergio Zurawski e Ruca Rebordão
João Afonso com João Lucas ao piano – dia 27
FURA FURA é esse encontro que faltava pela fraternidade real, sem velinhas, nem isqueiros, olhos nos olhos, palavras, escuta rigorosa e UTOPIA prospectiva, poesia.
Fernando Mora Ramos