A peça de Maquiavel surpreende pois sendo uma comédia, “imitação” do modelo greco-latino, de Aristófanes e Terêncio, escapa, desde logo na substância e na estrutura, à redução da intriga a um divertimento ocioso. Não que fosse negativo, o prazer é parte de um entendimento da vida como Maquiavel o praticou. Surpreende a maquinação da intriga coincidindo com os princípios da unidade de acção, de lugar e de tempo e também com a sabedoria do cientista político transferida para as personagens que movem a acção — o avançar da acção segue princípios de uma “arte da guerra” com as suas manobras de despiste e as suas alianças pragmáticas. E qual é a surpresa? A de tudo se conduzir na acção para um fim que, por linhas tortas e amoral, será feliz. O happy end encerra em si o adultério que a todos contenta por razões singulares, sob a forma de um abençoado e estabilizado casamento a três.
Vejamos: o casal Nícia, velho rico florentino e Lucrécia, linda jovem, não têm filhos apesar de casados há sete anos. E querem tê-los. Em Paris o florentino exilado Calímaco debate com convivas, entre jogo e copos, quais as mais belas mulheres, se as francesas se as italianas. Um florentino de visita, Calfucci, chateado com a disputa acaba por dizer que as francesas até podem ser mais belas mas que há uma parente dele que é a “mais bela de todas”. Calímaco fica alvoroçado e vem a Florença comprovar a tese. Amor à primeira vista. Mas a conquista surge como impossibilidade. Ela é mulher de um só marido, dedicada, crente, excelente governante de sua casa. Inacessível. Todas as tramoias são pensadas e Ligúrio, manhoso papa-jantares — o “parasita” da comédia clássica — casamenteiro, monta a armadilha necessária. Joga nos dois lados, o de Nícia, focado no herdeiro e o de Calímaco que quer Lucrécia. De ambos tirará proveito. E tentará que Nícia vá para termas, ambiente propício a engravidar — também a amores vários —, mas este não quer. Logo outra possibilidade inventa. Há uma planta, a mandrágora, que tem virtudes para estimular a gravidez. Logo convence Nícia que, tomá-la Lucrécia, é via rápida de fazer um filho. Nícia é cego quanto a ser pai. Qualquer via o convencerá. Mas a mandrágora tem um problema, traz filho mas mata o cobridor. Terá de ser outro que não o marido a cumprir a tarefa. Calímaco, é claro. A paixão vai extremada. Calímaco vira médico, é ele quem receitará a mandrágora a Lucrécia. Problema: Lucrécia não aceitará deitar-se com um vadio — é o que é sugerido — que ainda por cima morrerá, participando assim num homicídio. Solução: envolver a licenciosa mãe de Lucrécia na trama, Sóstrata e completar o quadro com o conselho, teologicamente fundamentado — e bem pago — do frade Timóteo.
É toda esta trama que aplicada a um quadro de relações de poder surge como acção política, isto é como realização de um objectivo subordinando-o a uma “política” de alianças em resultado da qual os fins se materializarão a bem de todos — o criado Siro parece ficar fora das contas.
Esta condução da intriga jogando poderes fácticos — o dinheiro, as posições hierárquicas, a persuasão, o segredo como diplomacia, o poder da igreja — concretiza-a com êxito. Ninguém escapa, no entanto, a um quadro que faz das liberdades da República um sistema corruptocrata. Seja como for o que se percebe neste texto e na teoria de Maquiavel é que a alta diplomacia com o seu secretismo e manobras cria soluções pacíficas e abrangentes para os impasses — com exclusão da violência extrema, o que atrai nesta comédia. Outras razões de atração são fortes e complementares. Ser um teatro que antecipa a Commedia Dell’Arte no encadeamento rápido das cenas e no conjunto extraordinário de figuras. E também o modo como retrata esta burguesia nesta sociedade de capitalismo embrionário: o dinheiro providencia tudo, a venalidade é absoluta, tudo tem um preço.
Jamais se viu peça tão irreligiosa, descrente e agnóstica, defensora de um pragmatismo alheio a qualquer crença, a-utópica, por assim dizer.
É também sinal de qualidade a elegância sintáctica, a riqueza do vocabulário, geradas pelo conhecimento dos clássicos e a hábil exploração dos níveis de linguagem que, de facto, oscilam entre o registo quotidiano, um falar que tudo deve à cultura florentina — o calão do Doutor Nícia — e esse outro mais elaborado que já referimos, inspirado nos clássicos.
Os apelos à “teologia” e ao bem público, à moral comum, mascaram os contornos reais dos procedimentos, justificam-nos legitimando-os pelos supostos princípios que contêm, como sucede com a tese do frade acerca de que o que peca é a “vontade”, o espírito e não o corpo.
Este microcosmo da Mandrágora é o retrato de um mundo contaminado pelo dinheiro, o credo, em todos os seus interstícios. Paradigma desse poder do poder de comprar é a cena de Frade Timóteo com uma “mulher rica” que lhe paga umas missas pela alma do seu defunto marido que, pelos vistos, a sodomizava. Nunca um padre foi tão negociante e contabilista, tão faminto de dinheiro. Mandrágora — a peça — que gozou do ambiente de liberdade que havia na Itália em que foi representada, nos anos vinte de 1500, será, uns anos depois, metida pela inquisição e pelas censuras de das épocas ulteriores, no índex. Será só no século XX e muito depois da guerra, a segunda, que encontrará, levada à cena, o reconhecimento do seu valor real e actualidade inultrapassada.

 

Fernando Mora Ramos

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