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APRESENTAÇÕES
12 e 13 de Maio de 2017 | Largo da Copa, Caldas da Rainha

Ficha Artística

Dramaturgia e montagem de textos | Isabel Lopes
Encenação | Fernando Mora Ramos

Cenografia | A partir de uma pintura/dispositivo cénico de João Vieira
Acabamentos plásticos | Rui Alves
Iluminação | Jorge Ribeiro

Composição Musical Rui Rebelo
Dispositivo sonoro e espacialização acústica | Francisco Leal
Figurinos | José Carlos Faria

Fotografia | Valter Vinagre e Margarida Araújo
Interpretação
 | Isabel Lopes, Alexandre Calçada, Fábio Costa, Carlos Borges, José Ricardo Nunes, Nuno Machado, António José Xavier (flautista) e os estagiários: Vasco Rio Peres, Ricardo Gomes, Ana Rita Silva e Ana Trino

A criação conta ainda com as participações do Coro Infantil do Conservatório de Música de Caldas da Rainha e de elementos da Banda de Comércio e Indústria

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Ficheiro em PDF

Triunfo do Inverno e Auto de São Martinho, de Gil Vicente

E não foi mais porque foi pedido muito tarde

Assim termina o “milagre” que o auto de São Martinho teatraliza. É a Rainha Dona Leonor que encomenda a peça a Gil Vicente actor/autor. Terá sido um doente do Hospital, existente desde 1485, a dar corpo em cena à figura do “pobre chagado”. O sentido do auto é claro: São Martinho divide a capa com o pobre e salva-o assim do frio mortal. O gesto tem obviamente um significado para além do literal, simboliza a ideia cristã de salvar os mais fracos da sua desprotecção, de assumir, ao nível estatal, já que a peça era pedida pela rainha, uma função social solidária. Diz isso, necessariamente, por meios teatrais. E essa função solidária teatralmente expressa pela partilha da capa é uma metáfora da função hospitalar. Neste sentido São Martinho dá substância, expressa o programa, ao Compromisso da Rainha, conjunto de determinações legais que constituía a lei do Hospital Termal, nesta perspectiva de um serviço de saúde para os pobres. As águas sulfurosas, santas, curativas, destinavam-se, antes do mais, a curar os pobres, os chagados, os que não tinham mais nada para sobreviver e necessitavam de protecção. O “dai-me esmola” entoado pelo chagado encontra resposta, não na esmola que os presentes eventualmente dariam, mas no gesto do Santo. É muito claro. Deste modo percebemos que a função caritativa não o era, na cabeça da Rainha, um facto aleatório do rico, mas um gesto organizado do estado.
E o auto termina com a extraordinária frase do título: e não foi mais porque foi pedido muito tarde. Aqui se lê um facto que dá sentido ao próprio teatro como arte social: a rainha encomenda a Gil Vicente este “milagre” sob forma escrita e confia na sua solução cénica, no resultado “espectacular” da encomenda. O teatro, como a função hospitalar, fazem parte do programa ideológico da rainha: se as águas santas ajudam a curar o corpo, o teatro dirige-se às maleitas do espírito e, neste caso, converte em imagem, através de um verbo mais longo que o costume, mais nobre, o gesto solidário do Santo, sendo uma espécie de iluminura animada.
Este “e não foi mais” coloca ao recriador contemporâneo um problema de tempo do gesto teatral. De facto o auto é muito curto. À época o tempo de uma representação de corte nada tinha nem com bilheteira nem correspondia a nenhuma duração canónica préestabelecida relacionada com uma hipotética relação tempo/dinheiro, que, como a outra, relação qualidade/ preço, faz a cabeça, e o olhar, do sujeito contemporâneo. Os dez minutos do auto seriam tão possíveis como as horas infinitas de uma celebração régia que envolvesse carros alegóricos e outros elementos espectaculares num dado teatro do poder no espaço da rua, teatro do poder monárquico em celebração afirmativa, exercício cénico do próprio poder, como é sugerido pelo Triunfo do Inverno que, nesta montagem que aqui apresentamos, se emparelha com o Auto de São Martinho fazendo coincidir um acontecimento comum aos dois textos: o do Triunfo do Verão, aqui realizado como Triunfo de São Martinho, nome da representação. É esse aliás o sentido popular do milagre de São Martinho, o de trazer um verão súbito – na época correspondia àprimavera, portanto lá para maio – que permite uma pausa nas dores insuportáveis que o inverno provoca nos corpos, no cosmos, na natureza, nas criaturas humanas e a instauração de um tempo novo, rejuvenescedor, restaurador de vida.
Deste modo a montagem de textos e a opção da dramaturgia foram no sentido de realizar primeiro esse teatro do inverno que tudo destrói e mata e de, na sequência disso, seguir o que o milagre propõe, prolongando a partilha da capa como gesto, num verão imediato que se transforma numa festa popular – lá estarão as castanhas e a água-pé para o provar.
A festa é um desejo que o inverno alimenta nos vivos que o sofrem – no caso o pastor e a velha da primeira peça que, como pobre da segunda são esse povo necessitado de solidariedade (curiosamente o Presidente Marcelo tem chamado a atenção, fortemente, para a questão dos chamados sem-abrigo) – e que, logo que possível, com o renascer da vida depois do ciclo de morte que o inverno espalha, se manifesta sem reservas como explosão de alegria liberta – será aí que a gaita e os gaiteiros se farão ouvir na sua música transbordante e de dança.
Este é o sentido da nossa proposta neste Maio de 2017. Proposta também aqui, séculos depois do São Martinho inicial criado como resposta a um pedido da Rainha – a palavra usada é essa, o que traduz a natureza da relação entre Gil Vicente e a Rainha, pedido que, apesar de tudo, seria entendido como uma ordem, pois – é também uma resposta a uma sugestão, por nós acolhida com muito prazer, do senhor Presidente da Câmara e, pensamos nós, dos representantes do povo da cidade no seu conjunto e da própria cidade a quem dedicamos esta representação.