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  • APRESENTAÇÕES25 e 26 de Março às 21h30 e 27 de Março, Dia Mundial do Teatro, às 19h00 | Sala Estúdio do Teatro da Rainha

Ficha Artística

Texto | Fernando Pessoa
Direcção | Fernando Mora Ramos
Leitura por | Cibele Maçãs, Mafalda Taveira e Marta Taveira. Participação de Beatriz Aurélio e Fábio Costa
Folha de Sala | Henrique Fialho
Design gráfico e imagem | José Serrão

Fotografias | Margarida Araújo

Valor da entrada: 2€

Apresentação de 27 de Março (dia mundial do Teatro) com entrada livre.
Entradas condicionadas aos lugares disponíveis.

Reservas e informações:
Segunda a Sexta das 9h às 18h
262 823 302 | 966 186 871
[RESERVA OBRIGATÓRIA]

VER PROGRAMAFICHEIRO EM PDF

SÓ VIVER É QUE FAZ MAL…

Garantir Pessoa, tomo 2, assim podíamos chamar à leitura encenada de “O Marinheiro — drama estático em um quadro” que o Teatro da Rainha propõe para os próximos dias 25, 26 e 27 de Março, Dia Mundial do Teatro. É a segunda parte de um plano de actividades em torno de Fernando Pessoa, programado para o corrente ano, e de que a estreia da peça “Na cama com Ofélia” foi o tomo 1.
Escrito em 1913, publicado em Orpheu 1 (1915), “O Marinheiro” tem essa particularidade de ser um poema dramático concebido em prosa, ainda que impregnado de uma poesia que o poeta de “Chuva oblíqua” viria a desenvolver e a aprofundar nos anos subsequentes à aventura assinalada pela publicação da revista Orpheu. Se podemos considerar esta peça como um objecto raro na arca sem fundo de Pessoa, ela é igualmente uma excelente porta de acesso ao universo complexo desse que dizia de si mesmo ser um poeta dramático: «tenho continuamente, em tudo quanto escrevo, a exaltação íntima do poeta e a despersonalização do dramaturgo.»
Despersonalização será o que se processa neste diálogo entre três donzelas que velam o corpo de uma quarta, fechadas no quarto circular de um castelo antigo. Em palco, as actrizes Cibele Maçãs, Mafalda Taveira e Marta Taveira lerão “O Marinheiro”, um ler encenado por Fernando Mora Ramos para quem «elas são três tiradas de uma mesma cabeça, antecipam os heterónimos e começam como dissociação do eu num parto doloroso — Pessoa confessa um estado de alma “histérico” na altura — que mais tarde, passado esse trauma dissociativo originário ganham identidade biográfica.»
Anterior ao surgimento do drama em gente, o dos heterónimos, este “O Marinheiro” veio a merecer um comentário nada abonatório do engenheiro Álvaro de Campos, em poema dedicado a Fernando Pessoa: «Depois de doze minutos / Do seu drama “O Marinheiro”, / Em que os mais ágeis e astutos / Se sentem com sono e brutos (…)». A leitura encenada por Fernando Mora Ramos visará contrariar o sarcasmo da criatura pessoana, contrariando, porém, as teses do próprio criador: «Não temos alternativa a contrariar Pessoa, fazendo agir as palavras em som, música e nessa música das vozes esse perfil único de cada timbre vocal.»
Teatro de jogos mentais, reflexão sobre a existência e a morte, a realidade enquanto sonho, pondo em acto uma paisagem onírica que vai buscar ao universo da mente a totalidade da sua cena, “O Marinheiro” é também uma indagação sobre o tempo e o modo como a partir de uma consciência do tempo chega o ser a um desejo de inconsciência. A insatisfação que atravessa as veladoras, numa comunicação repleta de antinomias, de paradoxos e de ambivalências, é a de alguém cuja materialidade finita e perecível se descobre velando um corpo. Daí a opção pelo sonho, por oposição à realidade material, como uma espécie de via para a eternidade. A dúvida permanente acerca da natureza das coisas é uma dúvida sobre o absurdo da vida e a ilógica que governa o mundo, de algum modo abreviada na questão elaborada pela terceira veladora: «Há alguma razão para qualquer cousa ser o que é?»
É uma pergunta inquietante, à qual a segunda veladora responde partilhando um sonho com as restantes. Aí entra o marinheiro, projecção de um mundo outro, que não este, porventura inautêntico, porventura meramente possível enquanto sonho. Não o revelaremos, para já. Preferimos desafiar o público a juntar-se a nós, dias 25, 26 e 27 de Março, no Teatro da Rainha, para em conjunto perguntarmos, repercutindo as palavras da primeira veladora: «Não valeria então a pena fecharmo-nos no sonho e esquecer a vida, para que a morte nos esquecesse?…»

SOBRE PÔR EM CENA O MARINHEIRO

Do ponto de vista do fazer artesanal do teatro, físico e imperfeito, de nódoa selectiva, a inacção não existe — existe o tempo, a pausa, o coração do tempo que pulsa, o ritmo, o ataque e a duração, o fôlego e a contracena, o toque, o gesto, gradações de um sensível que se lê, corpos imperfeitos em acção narrativa intrasubjectiva e interpessoal.
O Marinheiro, define Pessoa, é teatro estático. Diz ele que sê-lo implica ausência de conflito e de acção. O contrário de drama, drama sem drama, teatro da revelação de almas, da sua exposição metafísica, cena metafísica, em que o oculto e o imponderável podem tudo, cena cercada de ameaças insondáveis — essa personagem sombra, sublime, que tudo determina, uma espécie de deus in machina, interior, a morte, ou a morta, talvez… —, com qualquer coisa de esotérico, de conversa com os aléns ali corporizados por quem não acede a nenhuma alteridade, nem história, criaturas sem passado, inexistências, instrumentos vocais. Teatro mental, sem dúvida, na cena íntima e metafísica de uma cabeça só multiplicando-se.
Fazer neste caso é um ler. Um ler encenado é aqui a aposta. Mas atenção, Pessoa propõe um dispositivo cénico, um quarto num castelo, sala circular, quatro candelabros e uma disposição dos corpos em torno da morta, na essa. Esse cenário é um texto também, a sua circularidade, as chamas que instabilizam a luz e um tempo presente da cena, umas montanhas e uma nesga de mar imóveis, todo o horizonte fechado que uma fresta permite olhar, o mesmo, imutável. Dir-se-ia um ex-voto se as veladoras estivessem em posição de promessa, mas não, estão ali em busca de fazer soar uma existência inexistente, um passado que se esfuma, fechadas num círculo em torno de si mesmas, sendo a morta uma delas e o horizonte uma tela pintada. Como se fossem uma projecção antecipada da morte por vir, objectiva e certa, sempre ali, respirável, convivente, também ela algo inactiva, sem a foice do costume, assim mais à moda de um invisível que soa no inesperado que range. E são como o vírus, vivem no corpo da língua parasitando-a, se esta se apaga extinguem-se, como o pavio da vela instáveis e em risco de desaparecer a um sopro maior.
E a morta, ao meio, é apenas isso, a morte, um símbolo, um símbolo sem mais que a sua obscuridade absoluta, lugar e tempo do incognoscível. Não tem história, ser, nem identidade, é uma ausência presentificada num corpo que se não distingue. As outras três, a mesma coisa, são fantasmas, relevantes as vozes, em absoluto, sobrepondo-se aos rostos e em busca de recordações vagas que não se constituem em passado identificável, já que o que sonham são fragmentos inconclusivos, excepto o sonho que uma delas sonha de uma marinheiro que finalmente sonha algo palpável, desenhado, emancipando-se do que a sonhadora que o sonha sonha, para as incluir a elas, vítimas desejosas de se agarrarem a algo, no que ele O Marinheiro, constrói como sonho de um futuro que é identificar o seu próprio passado, um passado, para não desaparecer no poço da desmemória: um país, uma geografia, ruas, artérias, toponímia, um trajecto seu no meio disso tudo, uma identidade projectada na solidão da ilha que o acolheu, náufrago e ser solitário — curioso será pensar na estrutura da boneca russa e imaginar, neste caso, que a boneca maior, o sonho do marinheiro, inclui os outros sonhos, os sonhos nebulosos das veladoras, informes.
Finalmente elas são três tiradas de uma mesma cabeça, antecipam os heterónimos e começam como dissociação do eu num parto doloroso — Pessoa confessa um estado de alma “histérico” na altura — que mais tarde, passado esse trauma dissociativo originário ganham identidade biográfica, como sabemos. Interessante é serem fantasmas no feminino. Como se velar um morto fosse tarefa feminina, lavar os cadáveres é-o, as mais das muitas vezes. Mas aqui não há cadáveres, os mortos são fantasmados, almas.
Para nós, do fazer, é um teatro acústico, um teatro sonoro numa caixa cénica com a força de uma instalação, caixa sonora. É uma pintura estranha, tridimensional, as palavras ecoam num espaço que se quer fechado, as veladoras não existem para ser vistas, mas umas para as outras em espelho que não as espalha na íntegra, antes parcialmente e fazem parte do quadro estático, como se fossem corpos pintados em volume, manequins.
Não temos alternativa a contrariar Pessoa, fazendo agir as palavras em som, música e nessa música das vozes esse perfil único de cada timbre vocal. Se algo nos identifica é a voz, mais que o rosto. Há sósias visuais, não vocais. É o que faremos com a certeza de uma coisa: como dizia o João Vieira, o pintor, a sua era uma pintura das imagens das palavras, neste caso nós faremos uma pintura acústica, a das imagens sonoras das palavras. É nelas que as imagens visuais, buscadas em ausência no que se ouve de ser lido, sendo poéticas e nessa medida invenção e não reprodução — não são cópias — se erguem nas nossas acções químico-neuronais em resultado da acutilância auricular, singularizada e colectiva.
Este O Marinheiro seria para ser lido no silêncio solitário do leitor, projectado num espaço comum ganha outro voo, diferente desse estatismo teórico da adesão ao simbolismo maeterlinckiano. O que não significa que não estejamos diante de um experimentalismo com alguma radicalidade, pois tão educados somos pelo olho que nos entendemos mal com ele quando o substituímos radicalmente pelo ouvido, no meio de uma coisa que sendo visiva é algo fixa, como na cena grega aliás.
O que nos trás aqui? Por certo Pessoa, mistério insondável, múltiplo e inapanhável, e a beleza, o belo contido nessas imagens que as vozes das actrizes vão tentar dizer através das suas palavras. O certo é que um certo sensualismo vai imperar, diverso de qualquer sensacionismo, já que as vozes transportam de cada uma das actrizes o seu modo de transportar o texto, uma energia que no fundo vive de um sopro da libido. Essa coisa casta e pura de ouvir as palavras num registo sem corpo escapa aos corpos que as dizem e mais ainda ao acto da fonação em si.
Um drama estático no feminino, diria eu, num ambiente em que a expectativa de uma revelação se faz sentir para, na realidade, abortar. Como a morte, o que se passa ali, não se explica. É da ordem do mistério, do enigmático, talvez até do prazer do jogo do enigmático.

Fernando Mora Ramos