• DATA20 de Novembro das 15h00 às 18h30 | 21 de Novembro das 10h00 às 13h00
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  • MORADASala Estúdio do Teatro da Rainha | Rua Vitorino Fróis - junto à Biblioteca Municipal - Largo da Universidade | Edifício 2 | 2504-911 Caldas da Rainha

Na sua génese etimológica – e a coisa vem do grego – dramaturgia é o mesmo que dramatologia e, portanto, esse boémio das almas chamado dramaturgista está autorizado a honrar-se também com o título de dramatologista. Fica bem a alguém que anda nestas coisas da composição do texto dramático, ou noutras similares, ganhar o título de dramatologista e – não sendo um especialista da derme porque para isso precisaria de ser um dermatologista – um dramatologista há-de servir para alguma coisa neste mundo, já que no outro – naquele onde cada dia sobrevivem essas inefáveis criaturas a que damos o nome de personagens – ele presta serviço público, inventando biografias, acções e paisagens.
Mais ou menos, um dramaturgista é um científico do drama ou, simplesmente, um artista às voltas com o que podem fazer e dizer as tais inefáveis criaturas, e pode ser pensado também como uma máquina de iludir, e, por isto, ele devia ser chamado à responsabilidade. Jogar com o mundo – brincar à flor da pele ou ir fundo na humanidade até onde é ainda possível descobrir-lhe a matéria dos vícios e das virtudes – é uma irresponsabilidade que brada aos céus. Se fossem crianças ou gente destituída de boa razão, mas… dramaturgistas?! Em vez de andarem por aí nos textos e teatros em busca de utopias e risos, não seria melhor meterem a viola no saco e zarparem para os ventos da Patagónia? Talvez, sim, mas pela minha parte ainda prefiro trazer os pinguins do sul e deixá-los a cirandar por aqui. Certo é que os usurários deste mundo também têm as suas dramaturgias e estão bem armadilhadas: vamos com as boquinhas para o queijo e, zás!, ficamos entalados. É verdade. Governos, economias e finanças também têm as suas dramaturgias. Dantes tinham mais filosofias. Dantes, não havia bicho careto que não tivesse a sua filosofia. As empresas tinham as suas filosofias. Os talhos também eram filosóficos. E as imobiliárias… as imobiliárias guiavam-se por uma estratégia comercial qualquer e isso era uma filosofia. Até os clubes desportivos tinham filosofias. E as cervejarias, as casas de câmbio, os cabeleireiros, os museus, as agências de viagem.
As actividades humanas continuam a gerar visões, mistério, ideias, sentimentos, crenças, intriga, conflito e sendo a dramaturgia uma arte capaz de bem pensar e escrever tudo isso é bem possível que, mais tarde ou mais cedo, entre na moda dos diálogos mundanos. E sempre os gregos lá atrás com a ruína iluminada de Epidauro.
Podemos contemplar o ecrã celeste e bloquear o espírito não despegando das nossas acções comuns ou, pelo contrário, deixar que ele respire um pouco mais além, desprendendo-se de lugares humanos, mas seja com que modalidade for, se pensarmos que a dramaturgia anda por aí, precisamos de sentir que a gravidade trabalha sobre as personagens e que, embora leves e só palpáveis através dos actores, a vidinha que vão levando depende sempre da vidinha que levamos nós e que para lhes entendermos os humores só mesmo procurando entender o que nos afecta também nas andanças que temos uns com os outros. É por isso que enquanto houver natureza humana haverá dramaturgia. É simples e bem achado. Boa invenção, a dos gregos antigos.
Escutemos a arte de inventar histórias com falas e acções humanas, mesmo que às vezes alguns seres sobrenaturais sejam convocados ao convívio humano, e sigamos na procissão das linguagens e enredos. É a dramaturgia a dar-se ares da sua graça.

 

Abel Neves

Dá-me a impressão de que o teatro é o falso dentro do verdadeiro, da vida, e se acaso pretende imitá-la, mesmo nos seus aspectos de interior, difíceis, basta-lhe ser o mais verdadeiramente falso possível, baralhando os dados, compondo e recompondo os ingredientes para o caldo, esse que aí temos, desde sempre.
Insisto frequentemente: mais do que importarmos para o teatro as acções que vão por aí, o melhor será exportarmos o que somos capazes de inventar – falsamente, bem entendido – para que a vidinha tenha sobressaltos e na expectativa de radiosas andanças no relacionamento entre todos, mundo natural e selvagens seres incluídos.
Às vezes parece que basta expor o que experimentamos, ou simplesmente observamos, para conseguir, mediante um ou outro truque espectacular, uma qualquer novidade teatral capaz de uma benéfica desordem, mas também parece que as alterações, fora do teatro, não se dão assim por-dá-cá-aquela-palha, embora saibamos – por uma fé que nos vem dos antigos – que irradia das artes teatrais uma influência capaz de mudar até o clima e as ciências divinatórias, desde logo a meteorologia e, por estranho que possa pensar-se, as catequeses ideológicas camufladas na boa-vontade, também ela um disfarce, de uns quantos poderosos sem escrúpulos que andam por aí a gananciar este mundo e o outro. Daí, criarem-se os impedimentos ao saudável florescimento das artes, geradoras de mais e melhor cultura. Pessoas atentas e esclarecidas não são do agrado de quem quer pastorear sem receio.
Estes poderosos são uma pequena legião de finórios desejando escravizar a vida e são isso mesmo, empecilhos à liberdade de viver, embora alguns se armem em profetas do novo tempo tecnológico com as suas “antenas de luz” capazes de permitir a transmissão de dados ao que parece ilimitadamente, abrindo-se uma janela de infinitude na comunicação. Tudo muitíssimo veloz, óptimo para as economias que aí estão e hão-de vir – sustentadas no que sabemos – complexo e manhoso o suficiente para ficarmos, muitos, a ver navios, os olivais e as searas a tornarem-se parques de painéis solares, e boas terras, de riqueza agro-pastoril sustentável, a serem irreversivelmente violentadas com escabrosas explorações mineiras a céu aberto. O truque dos finórios é conseguirem impor a velocidade, a rapidez estonteante. A tudo se exige velocidade, até à estupidez. O estímulo permanente ao mergulho célere na abundância de informação e que não serve para nada, vem a ser o quê?
E o teatro, os seus artistas, no meio das ininterruptas cascatas de entulho?
Estamos estafadinhos de dizer que o teatro não faz milagres, mas ajuda ao mecanismo das ilusões e é sabido que uma boa ilusão é caminho andado para espoletar a festa do optimismo.
Faz-se obra com o optimismo e não só pespegando purpurinas na máscara e largando confetes. Acto optimista é reunir umas quantas pessoas e fazer espectáculo, dando a pensar que o mundo pode reinventar-se festivamente a cada instante, contrariando o propósito dos que apenas se interessam pela árvore das patacas.
Creio que compreendemos que não nascemos unicamente para cumprir um acto biológico ainda que tudo tenha casulo nesse enigma, mas seguiremos sempre com o mistério.
A nossa singularidade é um fulgor que pode rasgar as cerimónias sinistras do poder, e se formos capazes de reacender os lumes que foram a nossa origem – é do teatro que falo – aí teremos a morada protectora e que nenhuma perniciosa investida será capaz de extinguir ou profanar.
A genialidade grega – entre outras – foi ter inventado também um espaço para mostrar as invenções da fantasia humana, convocando e revelando as enormidades divinas e heróicas que a cultura helénica trazia há muito no património oral e nas artes plásticas, nas festividades religiosas e outras, e, pouco a pouco, também no património escrito.
A proximidade entre experiência humana e fantasia, sendo ambas matéria de uma só realidade, terá sido uma das boas condições para o êxito do teatro na antiguidade. Depois, já em época romana, as batalhas navais produzidas no Coliseu, o frenesim dos espectáculos cruentos, o circo, os gladiadores, as corridas de cavalos, terão chamado mais ao entusiasmo e ao aplauso, e as tragédias – também as comédias – talvez tenham funcionado menos ostensivamente nos teatros, mas não certamente nos lugares mais recatadas onde os requisitos e as tecnologias espectaculares, obviamente, não estavam tão evoluídas.
É notória a influência dos audiovisuais em desfavor do teatro, mas a resistência – e sem usar essa outra palavrinha tão na moda – é tão genuína que vale a pena pensar que haja o que houver de novos impactos tecnológicos o teatro continuará com as suas iluminações de sempre, convidando o público a essa tão velha e nobre cerimónia que é o de estar diante de actores, jogando, brincando, contando histórias, sejam elas o que forem nos seus modelos dramáticos.
Certos textos são duradouros, algumas linhas, alguns aforismos, um ou outro epigrama, algum erotismo, alguma política, alguns artefactos, alguma arte, alguma ciência, alguma arquitectura, alguma memória, certos ossos.
“Nós ossos que aqui estamos pelos vossos esperamos”, está escrito na entrada da Capela dos Ossos, em Évora.
Servir o teatro, sentir a cada passo o vínculo, os movimentos e as palavrinhas agora inaudíveis dos antigos comediantes de Epidauro, ouvir as pancadinhas de Molière, ainda que não se ouçam. Depois que se entra nessa morada, bem recebidos pelo contributo que cada um pode dar, é o sentimento de pertencer a uma juveníssima companhia com dois mil e quinhentos anos que faz com que a tal resistência seja um sopro absolutamente natural, um modo talvez feliz de viver a vida.
Eternamente amachucados pela alegria e melancolia das artes, querem-nos uns bobos facilitando risadinhas aos donos do quintal, e amaciados de quando em vez com umas migalhas para justificarem – miseravelmente, claro – a bondade da corte e dos seus servidores. Somos úteis nos entretenimentos sociais, no bacoco glamour, e os maraus gostariam que os tolinhos do teatro não pensassem muito, só o indispensável para executarem com garbo as suas histórias, e, sobretudo, que não chateassem, que fossem, simplesmente, uns ‘tadinhos e divertidos, inertes e bibelôs.
E à vista deste escaramelado mundo talvez um pouquinho de elegância.
Por hoje é isto, e com a Gronelândia a ir à vida. Bem me podia dar para falar de teatro ainda mais a sério, a brincar. A ver o que mais haverá. Obrigado pelo convite para estar aqui convosco. E continuação de um bom Outono.

Abel Neves
Caldas da Rainha, 20 de Novembro de 2021

As personagens são-nos superiores. Sobrevivem ao desgaste, à nossa morte, deixam-se reavaliar cada dia e se podem observar-nos, dizem: mas que jogo!, nós damos a alma e eles o corpo.
Podem os comediantes com as suas almas incluir-se na alma das personagens? Talvez elas só precisem de um corpo.
Não sendo máquina, o comediante age por sua conta, suspira, oferece a história da sua personagem do modo que lhe compete – sim, porque representar um argumento de alma é uma competência – e muitas vezes está até em pulgas para sair de cena o mais depressa possível para meter o nariz na espuma de uma cervejinha ou num assunto qualquer particular. Nada que não seja humano, que não esteja incluído nos acordos para a vida no teatro. No entanto, na plateia, exigimos simpatia, ou, sem exigência, um casamento entre uns e outros, os de cá e os de lá, os deste lugar e os que vivem na utopia. Quando somos público queremos uma verdade qualquer, que não haja desperdício, um divertimento, que valha a pena sair do lugar doméstico para entrar na casa pública e a ficção teatral nos devolva muito ou pouco de um paraíso perdido que nos interesse restaurar, pelo menos, dentro de nós, e com isso reforçar os diálogos que temos uns com os outros para que a vida não seja o aborrecimento que em muitos dos seus aspectos sabemos que é.
As personagens são uma invenção e tão a sério levam o seu papel que se julgam seres superiores. A nós interessa-nos que sim, que o sejam para sempre e com as suas hierarquias tão semelhantes às nossas.
O teatro tem a especialidade do truque. O truque da insistência, da boa repetição, faz com que uma figura virtual ganhe o estatuto de personalidade histórica. Do mesmo modo que alguns não acreditam que Armstrong alguma vez tenha pisado a lua, outros há que não duvidam da existência próxima e carnal de Hamlet. O senhor Hamlet anda por aqui e é natural que se fale dele, dirão. O teatro apenas se encarrega de o noticiar.
Um pouco como as trutas, inteligentes e escorregadias, as personagens, depois de inventadas, dificilmente se deixam agarrar.
Teremos algum domínio sobre mísseis, hipopótamos e gazelas, mas muito pouco sobre personagens, talvez nenhum. São seres superiores.

Abel Neves

Na sequência da estreia de “Pertinho da Torre Eiffel”, a 18 de Novembro, o Teatro da Rainha receberá o autor Abel Neves (n. 1956) para um laboratório de dramaturgia. As sessões ocorrerão a 20 e 21 de Novembro.

Natural de Montalegre, Abel Neves é autor de cerca de 50 peças de teatro, assinou 9 romances, 4 livros de poesia, uma colectânea de contos e outra de ensaios. Trabalhou doze anos na Comuna – Teatro de Pesquisa nas áreas de Dramaturgia e Assistência Literária, tendo sido responsável, na mesma companhia, pela disciplina de Dramaturgia no Curso de Formação de Actores e Animadores Culturais entre os anos de 1987 e 1989. Em 2002, publicou o volume de textos sobre teatro “Algures entre a resposta e a interrogação”. Talvez possamos agora, a propósito de “Pertinho da Torre Eiffel”, devolver-lhe algumas das interrogações que sondou nesses textos:
– Se o mundo é aborrecido deve culpar-se quem?
– Para onde olhamos quando estamos concentrados a falar ao telefone?
– A dramaturgia é uma especialidade de psiquiatria?
– O que temos para contar uns aos outros neste mundo?
– Todos os presidentes e primeiros-ministros sabem que um governo precisa de dramaturgia. Ou não sabem?
– Ocorre a necessidade da beleza em quem tem fome e sede?
– Como dialogar com a dança, a música ou a literatura?
– No teatro, o texto tira os pecados do mundo?
Entre muitas outras, estas são algumas das perguntas que “Pertinho da Torre Eiffel” nos suscita. A peça explora a instabilidade doméstica a partir de duas personagens fisicamente presentes e outras tantas ausentes, num jogo de interacções que excede aquilo que se vê. Em cena, tudo parece vacilar e perder-se em hesitações inconsequentes. O que é um casal normal? Poderá a ruptura ser rotina? O que esperam da vida Jana e Jasmim? Têm sonhos? Ambições?

Inúmeros foram os motivos de conversa que nos juntaram a Abel Neves, a 20 e 21 de Novembro.