Fora de cena
uma mão que espreita

Inesperadas, intempestivas, são estas fotos do Valter Vinagre. Quando o convidámos a fotografar Europa 39, textos de Brecht cosidos por Luís Varela sobre a engrenagem da guerra por vir, sabíamos contar com o que não sabíamos. Mas adivinhámos que não seriam fotos de cena — seu trabalho mais recente, posto de trabalho, dizia-nos isso — naquele sentido de que as fotos contassem a representação, o acontecimento metaforizado da História na fábula, o fenómeno em observação, capazes de no-la restituir como fotogramas de um filme nas suas evidências narrativas. E assim não foi, a cena das fotos ficou fora de cena. Não temos a estória, é pela presença dos signos com pregnância histórica que essa Europa de 39 surge: a cruz gamada, a saudação nazi, o casaco comprido negro do Führer, de pele e gola larga, o capacete nazi, as botifarras, as malas dos refugiados sempre em trânsitos, a vida um modo de fuga. Deste modo a sinalização da catástrofe está lá, no que conhecemos, mas descentradamente, na cena dos bastidores. Todas as demais fotografias e coisas fotografadas são estranhas: a estranheza define o gesto do fotógrafo, mesmo que algumas sejam acidentes encenados, gestos únicos, objectos — e pessoas — em espera.
O Valter vai atrás do que não corre à frente dele mas que está por detrás das coisas, ao lado, ou é descentrado, deslocalizado, tempo e lugar fora da operacionalidade, pausa entre actos, esquina, diria mesmo interior — há fotografias cujo visível é apenas a aparência de um corpo ausente, o sobretudo sobre o cabide-esqueleto — alguém —, as reverberações luminosas na pele do casacão nazi refazendo um corpo algo monstruoso, animalizado, marreca em acção.

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É como se o fotógrafo quisesse fotografar um dentro dos objectos, as formas que se enquadram sem quadro previsível, os actores sem teatro, na sombra da sua exposição, as coisas num seu aparente abandono, num tempo indefinido, antes de ou depois de, em fuga do seu uso ou do seu destino fatal, a cena.
E assim surgem séries, os tipos fotográficos desta “reportagem” — feita ao modo de um flaneur que só vê o que não se dá a ver — ao avesso do espectáculo: chamei-lhe fora de cena pois se a cena surge é porque todas as fotos são ecos dela ou suas preparações: adereços em pausa, naturezas mortas espontâneas, naquela ordenação que a contra-regra teatral ordena, à espera de serem recompostas — as mesas de adereços são tabuleiros de xadrez, à medida do jogo as peças mudam de posições, umas partem, outras voltam —, actores a mascar o texto com algum desespero, perdendo a cara, metidos dentro, escadas capturadas onde não levam a nada, esquadros perdidos à espera de engradado, uma mão que espreita e, por assim dizer, irrelevâncias absolutas, situações objectuais infotografáveis por falta ou de assunto ou de expressão — o assunto é a dignidade do gesto.
O que quero dizer com isto? Pressinto o seguinte: dizemos muitas vezes que a foto é o enquadramento, que depende da fotogenia do que se fotografa, objecto ou rosto, que há coisas fotografáveis, porque se baseiam numa dignidade do fotografável e outras não. Pois é o exacto contrário. É o que está por detrás, ao lado, é ponto nodal de uma margem, periférico, que surge. E surge do nada, porque não era para ali que olharíamos. E o que não se olha, não existe, mais do que não se vê — o treino do olhar, os modos de ver, ensinam o essencial: que olhar é de algum modo escapar ao modo como nos organizam o olhar no que é fotografado, imaginado em ecrã ou papel, o que seja. Olhar é ver o que não lá está no que lá estará. E como fotografar será olhar, neste caso o olhar do fotógrafo não é mesmo o nosso, transmuda-se, como se visse dentro como um radiologista e visse outras coisas de rima obscura, como um poeta e visse mais, como um felino na noite. E o fotógrafo sempre fugido do meio, esse lugar comum de uma inevitável cegueira de ver, saída de uma hierarquia pré-feita, de uma composição de simetrias e falsa harmonia, de uma Grande Ordem.
Num tempo em que a fotografia é um vómito sucessivo de selfies em fluxo, sem olho prévio editadas, verborreia imagética em caudal incontinente, em que os clics são uma praga invadindo espaços e horários inesperados como o faz a poluição que não é contenível, em que a imagem saturou tudo, espaço e tempo, lugares e todo o nosso espaço vital — na Praça de São Marcos as estátuas, enfadadas, optaram pela surdez — e nela a fotografia, ilustrativa ou decorativa como as coisas estúpidas, numa altura em que a superfície das coisas é uma mega-indústria globalizada na pele produzida da realidade e as imagens, como linguagem publicitante — tudo é publicidade, empresarial ou narcisa, massiva e mesmista — procuram compulsivamente a tal visibilidade que rende — como o que polui — o que o Valter faz é num outro tempo, lugar e espaço que são invenção dele. Anti-fotografia? Contra a sua linguagem dominante, publicitante? Por certo. Fotografia do infotografável? Pois, por que o que surge é estranho e estranhado pelo gesto do fotógrafo e não é relevante a não ser na medida em que ele o fotografa — o irrelevante, sabemos, é muitas vezes o que é oprimido, expulso, posto de lado, precarizado.
E lá onde tudo nos parece acidental, lá está a mão dele.
O que se pode dizer destas imagens incapazes de espectáculo?
Que sim, são fotografia por isso mesmo — voltamos a ser capazes de ver, ver no sentido em que o que surge se revela ou é desvelado e não é nada mítico: dá forma a um sentido em imanência, a um imaginável não imaginado, ao emergir de uma forma, de um sentido, de um pensamento imprevisto.
São fotografias e não são mais fotos para a infindável galeria dos vazios. A preto e branco, para dar um coice no vício da cor e para regressar ao essencial — o preto e branco dói porque já não há, a sua força nostálgica remete-nos para algo essencial, os traços precisos relevados pelo seu contraste, branco a dar vida ao preto e o contrário. O que lá está é estranho para todos nós. E leva-nos aonde não iríamos. E isso é mérito do Valter Vinagre e atrevo-me a dizer, o seu modo de ver.
Belíssimas fotos e raras, rarefeitas de espaço, de tempo e de assunto previsível, de forma premeditada, mas meditada.
Nada pior do que na expectativa encontrarmos o que esperávamos, isso é sinal de morte, passividade ressurgido alimento.
Nada mais estimulante que o estranho, na sua expressão mínima, na sua inexistência existente, na sua alegada falta de fotogenia.
Eis aqui o estaleiro de Europa 39, bastidor e construção.
O espectáculo, podemos daqui tentar imaginá-lo.
Esta é uma exposição de fotografias, não duvidem.
A fotografia como linguagem singular e subjectividade do fotógrafo, nunca se ausenta.

Fernando Mora Ramos

  • DATA23 e 24 de Junho de 2017
  • MORADACéu de Vidro