RECITAL
Supomos que não gere debate a dúvida acerca da natureza oral da poesia. Parece-nos óbvio que antes de ter passado à escrita, o poeta expressou-se oralmente. A escrita permitiu desenvolver processos de construção do poema, ao mesmo tempo que ofereceu à palavra uma maior resistência face ao desgaste imposto pela passagem do tempo. Gravadas no papel, as palavras mantêm uma singularidade que a transmissão oral tende a atraiçoar. Para o bem e para o mal.
A questão que hoje se coloca é de outro tipo. Há quem defenda que a poesia é para ser lida em silêncio. Entre o lido e o ouvido surge o anátema da dicção, ou seja, a leitura em voz alta impõe a quem ouça uma interpretação do que está escrito. Não vem ao mundo problema de maior, se aceitarmos que sobre o escrito/ouvido o sujeito passivo exercerá sempre o papel do tradutor. É verdade que traduzir da tradução pode ser perigoso, amplia a distância face ao objecto original. Mas por vezes, reconheça-se, percebe-se melhor o objecto original através de quem o saiba dignificar com uma boa interpretação do que estando em contacto directo com ele mesmo.
Estar em contacto com um mesmo texto através da leitura ou através da audição é estar em contacto com dois textos diferentes. Seja como for, importa sublinhar, antes de mais, o efeito que o texto produza sobre quem esteja em contacto com ele. Não me recordo se comecei por ouvir poesia ou por lê-la, mas desconfio que seja mais provável a segunda hipótese. Ainda assim, guardo como bastante enriquecedoras as horas passada a ver e a ouvir “Palavras Ditas” (1984), série de programas através dos quais o saudoso Mário Viegas interpretava, dizia, divulgava, fazia chegar a um vasto auditório poemas de proveniência distinta. Foi num tempo em que a poesia chegava à caixa mágica.
Fora do contexto televisivo, ainda hoje impressiona ouvi-lo a dizer Daniel Filipe — “Ei-la a cidade envolta em dor e bruma”… — ou José de Almada Negreiros. A interpretação oferecida ao “Manifesto Anti-Dantas” ou ao poema “A Cena do Ódio” é ela mesma um poema. Não são muitas as pessoas que dizem bem poesia, que a pronunciem oferecendo às palavras uma vivacidade que as torne orgânicas. Um poeta que diga bem os poemas dos seus pares é um achado.
Vem-me à memória a primeira vez que senti o arrepio da emoção com uma leitura de poemas ao vivo. Foi no bar do teatro A Barraca, não consigo precisar quando, que apanhei por mero acaso o poeta Joaquim Castro Caldas a dizer poemas (seus? de outros?) com uma ironia tão serena quão desconcertante. De tão raros, esses momentos são preservados pela memória. Ecoam imagens, versos esfumando-se como o fumo de um cigarro, a voz retida pelo uísque num êxtase sem pressa. Tudo ao contrário daqueles excessos datados de “Ary Por Si Mesmo”.
Se o histerismo da leitura de Ary nos irrita, por teatralizar a raiva com desnecessária expressão, já no seu tempo, outros, como Alexandre O’Neill ou Mário Cesariny, davam asas à liberdade sem precisarem de soltar gritos ensurdecedores. É fácil decepcionarmo-nos com um poeta a dizer a sua poesia. Heberto Helder comove, ainda que a voz usurpe aos poemas o mistério que os obsidia quando lidos em silêncio. Outro que dizia muito bem os seus poemas era Al Berto. Porque dizia-os como se não estivesse a dizê-los. Lia-os. Tem uma voz que sustenta a empatia reclamada pelas palavras, abre-lhes a janelinha do som e deixa-as respirar.
Mas na história dos recitais em Portugal há um que merece ser destacado. Foi recentemente recordado numa belíssima publicação com o título “A Técnica do Golpe Literário” (Montag, Maio de 2014). Neste folheto, Pedro Piedade Marques (n. 1971) recorda um mero episódio na vida do editor Fernando Ribeiro de Mello. Um episódio que ficou para a história dos episódios literários em terras lusas com a singela classificação de “O Teste”. Imaginemo-nos em Junho de 1964, recuemos cinquenta e quatro anos neste país de tão previsíveis e acomodadas práticas. Na Sociedade Nacional de Belas Artes, um jovem portuense emigrado na capital organiza um recital de poesia. Arrasta uma sombra de polémica, embora nada que se compare ao que aí vem.
O Teste, ou seja, o dito recital, tem uma estrutura original e uma intenção clara: liam-se poemas aos pares, de autores provenientes de “escolas” rivais (neo-realistas/surrealistas) como se estivéssemos num ringue de boxe; ganhava quem merecesse mais aplausos. Os resultados foram meticulosamente divulgados, tendo sido Vítor Silva Tavares o árbitro que, de relógio na mão, cronometrou e registou o tempo que demoraram os aplausos. Os resultados provocaram escândalo, particularmente quando um tal de Francisco Sousa Tavares não gostou de ouvir Natércia Freire bater por larga margem Sophia de Mello Breyner (que tinha acabado de receber o Grande Prémio de Poesia).
À distância de 54 anos, este episódio deixa de ser mero episódio. É testemunho de um tempo onde a resistência tinha lugar com espírito combativo. Ninguém anseia que o tempo volte para trás, nem sequer um grama de nostalgia nos incomoda. Daí que a nossa proposta não seja a mesma de um ringue de boxe. Vamos ler poemas ao acaso, sem que qualquer um dos leitores chamados à liça faça a mais pequena ideia do que os outros vão ler. Há a hipótese de nos repetirmos? Há. Mas nenhum poema é o mesmo em duas vozes diferentes.
Henrique Manuel Bento Fialho
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