«Benévolos ouvintes, Deus vos guarde», temos para propor uma comédia de Niccolò Machiavelli, esse mesmo cujo nome se tornou com o tempo etiqueta do mal. Maquiavel, mais conhecido pela filosofia política sintetizada em “O Príncipe”, obra póstuma logo amaldiçoada por quem de direito, afirmou-se ainda em vida como autor de comédias de sucesso. Entre elas, a primeira de todas foi “Mandrágora”. Regressa agora aos palcos portugueses, com tradução original de Isabel Lopes e encenação de Fernando Mora Ramos, numa produção que a companhia Teatro da Rainha colocará em cena no Largo da Copa, junto ao Hospital Termal, espaço nobre da cidade de Caldas da Rainha que ali adquirirá feições florentinas. Cenografia a cargo de José Serrão, figurinos de José Carlos Faria e música de Tiago da Neta.
“Mandrágora” apareceu primitivamente em 1518, na cidade de Florença, sob o título “Commedia di Callimaco e Lucrezia”, obtendo êxito estrondoso. Tanto que foi posteriormente representada em Veneza, Bolonha, Roma, na corte do papa, conhecendo várias reimpressões. Outras peças foram então encomendadas a Machiavelli, caído em desgraça após o regresso dos Médicis à cidade-estado que o autor servira durante os 14 anos de res publica. Beneficiando da abertura de Florença ao teatro, actividade que se inscrevia no contexto de festas públicas, laicas ou religiosas, Maquiavel aproveitou-se do riso para beliscar a Igreja, retratando padres ávidos e pouco preocupados com a virtude moral dos seus rebanhos. Mas não é só a Igreja quem sai beliscada, nesta sátira que, antes de mais, é uma denúncia incisiva e inteligente da hipocrisia que grassava numa Itália dividida, oligárquica, endemicamente corrupta.
Para o encenador Fernando Mora Ramos, “Mandrágora” surpreende pela «maquinação da intriga coincidindo com os princípios da unidade de acção, de lugar e de tempo e também com a sabedoria do cientista político transferida para as personagens que movem a acção». Colocando em cena a célebre máxima segundo a qual para atingir determinado fim todos os meios convêm, o autor engendra uma trama em que o adultério e a bastardia se justificam pelo bem e pelo prazer proporcionados. «Se ao homem nunca lhe faltar a vontade, também está sempre a tempo de se arrepender», diz a certa altura Frei Timóteo. Em havendo arrependimento, não está garantido o perdão?
Com interpretações a cargo de Isabel Lopes, Cibele Maçãs, Fábio Costa, Fernando Mora Ramos, José Carlos Faria, João Melo, Nuno Machado e Ricardo Soares, os actores encarnarão personagens sem escrúpulos, licenciosas, velhacas, manhosas, astutas, ou seja, maquiavélicas, regidas pela lei do dinheiro que tudo compra e da vontade que tudo fundamenta. Tal como aconteceu em Faenza no século XVI, em coro cantaremos: «Aqui perante vós comparecemos, / Trazendo só connosco esta harmonia, / apenas para com ela enaltecermos / Tão leda festa e doce companhia».
Henrique Manuel Bento Fialho