Na sua génese etimológica – e a coisa vem do grego – dramaturgia é o mesmo que dramatologia e, portanto, esse boémio das almas chamado dramaturgista está autorizado a honrar-se também com o título de dramatologista. Fica bem a alguém que anda nestas coisas da composição do texto dramático, ou noutras similares, ganhar o título de dramatologista e – não sendo um especialista da derme porque para isso precisaria de ser um dermatologista – um dramatologista há-de servir para alguma coisa neste mundo, já que no outro – naquele onde cada dia sobrevivem essas inefáveis criaturas a que damos o nome de personagens – ele presta serviço público, inventando biografias, acções e paisagens.
Mais ou menos, um dramaturgista é um científico do drama ou, simplesmente, um artista às voltas com o que podem fazer e dizer as tais inefáveis criaturas, e pode ser pensado também como uma máquina de iludir, e, por isto, ele devia ser chamado à responsabilidade. Jogar com o mundo – brincar à flor da pele ou ir fundo na humanidade até onde é ainda possível descobrir-lhe a matéria dos vícios e das virtudes – é uma irresponsabilidade que brada aos céus. Se fossem crianças ou gente destituída de boa razão, mas… dramaturgistas?! Em vez de andarem por aí nos textos e teatros em busca de utopias e risos, não seria melhor meterem a viola no saco e zarparem para os ventos da Patagónia? Talvez, sim, mas pela minha parte ainda prefiro trazer os pinguins do sul e deixá-los a cirandar por aqui. Certo é que os usurários deste mundo também têm as suas dramaturgias e estão bem armadilhadas: vamos com as boquinhas para o queijo e, zás!, ficamos entalados. É verdade. Governos, economias e finanças também têm as suas dramaturgias. Dantes tinham mais filosofias. Dantes, não havia bicho careto que não tivesse a sua filosofia. As empresas tinham as suas filosofias. Os talhos também eram filosóficos. E as imobiliárias… as imobiliárias guiavam-se por uma estratégia comercial qualquer e isso era uma filosofia. Até os clubes desportivos tinham filosofias. E as cervejarias, as casas de câmbio, os cabeleireiros, os museus, as agências de viagem.
As actividades humanas continuam a gerar visões, mistério, ideias, sentimentos, crenças, intriga, conflito e sendo a dramaturgia uma arte capaz de bem pensar e escrever tudo isso é bem possível que, mais tarde ou mais cedo, entre na moda dos diálogos mundanos. E sempre os gregos lá atrás com a ruína iluminada de Epidauro.
Podemos contemplar o ecrã celeste e bloquear o espírito não despegando das nossas acções comuns ou, pelo contrário, deixar que ele respire um pouco mais além, desprendendo-se de lugares humanos, mas seja com que modalidade for, se pensarmos que a dramaturgia anda por aí, precisamos de sentir que a gravidade trabalha sobre as personagens e que, embora leves e só palpáveis através dos actores, a vidinha que vão levando depende sempre da vidinha que levamos nós e que para lhes entendermos os humores só mesmo procurando entender o que nos afecta também nas andanças que temos uns com os outros. É por isso que enquanto houver natureza humana haverá dramaturgia. É simples e bem achado. Boa invenção, a dos gregos antigos.
Escutemos a arte de inventar histórias com falas e acções humanas, mesmo que às vezes alguns seres sobrenaturais sejam convocados ao convívio humano, e sigamos na procissão das linguagens e enredos. É a dramaturgia a dar-se ares da sua graça.

Abel Neves

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