As aves, de Aristófanes, falam de uma Atenas paralisada pelo juridiquismo tribunalício, pela burocracia, longe da Atenas democrática. E pela corrupção e amiguismos. Na peça se concebe uma fábula : dois atenienses, Evélpidos e Pisteteros, partem para o território livre das aves, nas nuvens, em busca de espaço para fundar uma cidade nova, tendo um gaio como bússola e a informação de que, Tereu, rei humano convertido em pássaro por Zeus, como castigo, tem informações sobre onde tal terra existe.
O texto de Aristófanes está, no entanto, demasiado preso ao seu tempo, as suas referências a pessoas e instituições, a localizações no tempo, tornam o texto hermético hoje e convertem-no em “material” a reinventar, segundo critérios de aproximação lúcida, e produtiva semanticamente, aos nossos tempos.
Foi o que Chartreux fez com a sua Cidade dos pássaros, não perdendo entretanto a oportunidade de alargar o contexto grego, introduzindo outras peças na adaptação, nomeadamente Édipo Tirano e Édipo em Colono, curiosamente tragédias. Com os três textos constrói uma misturada, uma trilogia vazada em síntese cómica. Esse alargamento temático estabelece ligações entre a Grécia histórica e a do mito, e transporta esses elementos para a actualidade. Que actualidade? A da democracia liberal burguesa dos dias de hoje, a do fechamento da Europa universalista sobre si mesma como “nação”, centrada mais num modo de vida das suas classes médias e sua economia — a dos bancos e das crises sucessivas — que no seu universalismo cultural e nas liberdades. Isso explica que a certa altura se adjectivem as “qualidades” desta democracia do seguinte modo: corrupção, tráfico de influências, manipulação dos espíritos, censura por vias directas e indirectas, xenofobia, enriquecimento ilícito e pobreza extrema, demagocracia, em suma. Um retrato do que antes na Europa se dizia ser um tal Terceiro Mundo, tiranocracias.
Chartreux trabalha a utopia aristofânica que a peça propõe como uma distopia, num primeiro tempo a ficção constrói-se em registo para-militar, uma fortificação — um muro à Trump — generalizada e num segundo tempo declara-se guerra aos imediamente próximos, humanos e divinos, Mundo e Olimpo. O projecto de Pisteteros – Pisteteropolis – é, finalemente, a ditadura, uma ditadura que passa pela escravização do povo livre dos pássaros, um regime colonial-tirano, que passa pela provocação aos viznhos, pela imposição de impostos e tributos aos fumos sacrificiais.
A adaptação de um clássico — clássico popular — cumpre aqui o seu papel. É pela via da recriação escrita, da nova estruturação narrativa e da inclusão de elementos históricos que se invoquem de lá – século V antes de Cristo – para cá – século XXI, que a nova fantasia, com pregnância nas visões de hoje, cumpre um papel.
democracia, corruptocracia, burocracia e demagocracia
Na peça original já as doenças da democracia são diagnosticadas. E não estamos longe de descobrir uma coincidência, apesar da distância no tempo, na sua gangrena. Se a democracia consegue praticar um exercício do poder representativo, se a cidade enquanto partes está presente na gestão diária da sua vida, se a decisão é ponderada entre poderes, a sua degenerescência assinala-se, como hoje, pelo abuso de poder, pelo nepotismo – as famílias, sejam as de sangue, sejam as partidárias, foram desde sempre razão de corrupção, entidades que favorecem a proximidade na decisão – pelo enriquecimento ilícito, pelo corporativismo, pela emergência de castas de poder, de privilegiados, pela exploração desenfreada dos precários, dos de baixo, pela expulsão dos estrangeiros, pelo desprezo da hospitalidade, etc.
No texto grego a diagnose socio-política aplica-se na íntegra às demagocracias actuais. Mas onde a adaptação é de facto de uma actualidade diria instante, brilhante, é no modo como um certo saudosismo conservador e cego é, pela via de um nacionalismo identitário estreito, revelado a partir da promessa — feita pelo sedutor Pisteteros — retro-prospectiva de uma idade do ouro possível e limpa de “imperfeições e sujidades” de todo o tipo: jurídicas, raciais, económicas, de costumes, linguísticas, etc.
Em suma, o verdadeiro retrato das extremas-direitas é feito, uma lição de como estas brincam à utopia — retro-utopia — para instaurar a barbárie, a lei do mais forte. E isso em nome de uma pureza racial ridícula — a genética clarificou as mentiras — e de uma ordenação social autoritária e patriarcal.
É assim que em partes da Europa civilizada as coisas ocorrem, em particular nas amadas França, Itália e Inglaterra, mas também na Hungria e na Polónia, Europa mais distante. Não alheio a estas movimentações são as situações nos EUA, Brasil e Filipinas, por exemplo, não falando de outros regimes não democráticos, como são os casos da Rússia, da China, da Arábia Saudita, entre outros.
as formas do cómico
Se Aristófanes é pai de um cómico inicial, político, que nomeia o adversário directamente em cena, que faz chacota dele, sejam eles Sócrates ou Cléon, que expõe em cena um prazer desmedido do que é escatológico, fazendo do peido uma instituição protagonista e do sexo uma constante vital explicitada e também é quem, por assim dizer, dá corda a um instinto ligado à festa e aos prazeres colectivos, à piada e à graça verbal, ao manejo obsceno de partes do corpo em cena, é porque as suas relações com a vida eram distantes da tragédia e amantes do natural. Por isso o seu teatro também abandalha o mundo dos deuses. Em Aristófanes o baixo instintual é “nobilitado”, deixa de se exercer em aparte de caixinha fechada, é politizado, por oposição ao hieratismo da tragédia, à força mítica das suas figuras simbólicas, à fliação no mito. A Comédia trata do dia a dia, a tragédia do “destino”.
Na adaptação de Chartreux, o que reconhecemos como terreno do cómico? O princípio da mistura, de uma escrita que não escolhe dados alimentares, recursos de ficção que sejam seleccionados à unha, vai a todas. Deste modo desde o gag verbal ao gesto obsceno, passando pela carnavalização dos comportamentos e por uma espécie de erupção diabólica do cómico físico — o cómico joga o feio e menos o belo — assim como pela contrafacção do trágico e das suas formas sempre eloquentes, pelo melodrama, e na perspectiva contemporânea, pela banda desenhada, pelo cinema mudo, por Chaplin — o cómico passa por tudo. O seu princípio é o da tentativa da festa, de uma desregulação de tudo que crie um momento de libertação dos sentidos. É uma purga, uma desintoxicação dos preconceitos, tem virtudes próprias de águas termais, limpeza inteira, mostra como viemos ao mundo apenas corpo, animais.
Seguindo esta via, o que esta encenação tentou foi, por um lado, chamar a atenção — desenvolvendo em cena modos de jogo que mostram o tirano, a exemplo do trabalho de Chaplin no Grande Ditador e de Bruno Ganz em Hitler no filme A queda, com um lado psicopata, como aliás é evidente em Trump à vista desarmada — para o modo como as ditaduras se engendram a partir de “rostos”. A ditadura é um rosto, um individuo que a protagoniza, é um poder pessoal sem escrutínio, uma forma política assente no primado de uma cegueira da massa, das massas, é um gesto de grande manipulação que só é possível porque há “fãs” — e obviamente forças obscuras por detrás.
Os modos hoje da cegueira estão obviamente centrados nas exigências do espectáculo diário, o ecrã é nosso de todos os dias. Por outro lado, esta encenação tenta tornar claro que este “país livre dos pássaros” é ainda o que resta de um mundo natural em extinção e que os pássaros são, por assim dizer, um outro dos povos índios, vítimas do primeiro grande holocausto cometido pelos americanos “cowboys” e pioneiros. Por essa razão os signos que apontam para essas culturas estão presentes. Os pássaros acabam escravizados, carne para canhão, vítimas (in)conscientes — demonstra-se em cena um mecanismo base de alienação — do projecto de Pisteteros, o ateniense que prometera um Novo Mundo que seria um Mundo Novo.
quando a utopia é armadilha
Deste modo, o lado positivo da utopia, mundo ideal que promove em antecipação a igualdade geral, metodologia prospectiva, caminho de glória e emancipação universal, inverte-se e torna-se o seu contrário. Na peça o falanstério é imediato. A construção da cidade fortificada faz do país um quartel. A militarização da vida faz da vida uma hierarquia de relações de submissão. Não escapam a esta nova vida os fuzilamentos por traição e os castigos públicos, as torturas. Não estamos longe nem de Guantanamo, nem das cabeças decepadas nos ecrãs ao modo do chamado Estado Islâmico. Os imperialismos entendem-se, as guerras e o negócio armamentista são economia. E a economia é terreno do sagrado. Ungido está o dinheiro, santo.
pulsão ditatorial e narcisismo
Pisteteros é um narciso. É cheio de si que sai de Atenas. É um cidadão comum a rebentar pelas costuras de si mesmo. Grifântias diz: Pisteteros e Evélpidos, nunca ouvi falar. Essa dimensão narcisa é uma primeira condição pessoal — pesonalidade, chamam-lhe, mesmo quando sucedâneo e não pessoa — para a imposição a terceiros do seu eu imperial, é um primeiro passo para converter o egocentrismo em idolatria. Os modos de o fazer são demagógicos: no caso, é vendida ao “povo livre dos pássaros” a ideia – uma ideologia — de que os antepassados eram REIS, que tinham origens ancestrais monárquicas, que antes viviam em palácios e que foram homens e deuses a destroná-los, a tirar-lhes o que era deles.
Não tem o galo uma crista, uma coroa, não é a carriça real, real? São tudo sinais dessas origens. E o povo livre dos pássaros, seduzido por essas origens douradas, cede a sua liberdade livre e investe em Pisteropolis, o Mundo Novo, vota Pisteteropolis – o retrato da Assembleia tão bem orquestrada é elucidativo.
A partir daqui, os pássaros, que viviam segundo regras livres na natureza, passam a ser comandados, dependentes.
Deste ponto de vista o texto de Chartreux é claramente crítico dos modos hoje industriais de generalização das formas narcisas de relação assentes no culto constante de um individualismo obviamente idêntico ao do tipo do lado, narcisismo geral obrigatório, silfieómano.
Será então, quando as miragens do consumo se tornam mais nevoentas, e o consumo menos acessível tal como as publicidades o faz em “cinemas”, quando o poder de compra pode menos condomínio isolado e bens materiais topo de gama, como se diz, que o desejo inconsciente de encontrar um bode expiatório vem ao de cima?
Nesse ponto o caminho da ditadura está aberto.
fernando mora ramos