Leio um suicídio em cada quatro horas, numa notícia no Público e penso no discurso de Passos Coelho, no modo como o correu, lançado um minuto antes do anúncio feito, às 19 horas e 19 minutos, os olhos enfiados algures e no fim, lido, saída precipitada por não poder fazê-la à francesa – será que fazer a coisa assim coincide com a autoficção que faz de dizer a verdade de modo frontal e de ser ele o protagonista da má nova? Um discurso cujo gesto foi o de passar entre os pingos da chuva – não falou do essencial, o falhanço da meta do défice – dito de modo ultra rápido para não estar com quem o ouvisse, não ser claro o seguimento do que disse e sem frontalidade gestual, aquele olhar que uma postura de verdade obriga, olhos nos olhos com o conjunto dos portugueses, não são uma audiência assim como o discurso não seria um monólogo exterior, dito para dentro mesmo que sem matéria subjectiva. Mas foi. E o gesto diz tudo: o Primeiro-ministro gostaria de ter proferido outro discurso, o discurso que inauguraria um novo ciclo – que vendia. O ciclo decorrente de terem atingido a meta do défice, os tais 4,5%. E estive a ouvi-lo, coisa que sempre faço depois mais do que no momento – desconfio de imediatismos, não ajudam a razão – vendo o discurso que não proferiu neste que proferiu. Tenho por experiência profissional um grande treino de descodificação do gesto, no sentido amplo, o gesto social e não a gesticulação, e o que vi foi uma espécie de raid verbal, como se o Primeiro-ministro tivesse pensado: não posso inaugurar o ciclo da saída da crise, só posso vender mais do mesmo, um acrescento de austeridade à austeridade que nada trouxe: um desastre, na circunspecção séria do olhar caído. A tal má nova estava ali no gesto, que diz o que quer.

Volto ao suicídio de quatro em quatro horas e vem-me a estranha imagem de que é este o sinal mais claro da crise, que é esta “a estatística” mais objectiva do que se passa, que não são os 17% de desempregados nem a derrapagem no défice, gravíssimos dados, mas sim este horário da renúncia à vida, à nossa vida, ao tipo de vida que agora se vive. Na realidade sente-se um enorme mal-estar no país e todos sabemos que isso não se deve a uma clareza de propósitos para a saída da crise de que comungassem a maioria dos portugueses, deve-se ao contrário, à distância abismal entre governados e governantes. Todos sentimos um ambiente de fraude, de política como manipulação, nenhum de nós espera a verdade na boca do Primeiro-ministro, todos tentamos pescar na mentira prevista a verdade dos factos que virão, e que se centra claramente numa regressão do país, na pobreza e na exclusão do consumo de muitos portugueses, no desemprego, mas fundamentalmente num tipo de ambiente, generalizadamente crispado, desistente e em que o medo, também do futuro, faz de novo lei.

O que vivemos deve-se a um novo tipo de autoritarismo, que se forma no austeritarismo e nos modos da sua imposição, um autoritarismo que não necessita de institucionalizar a polícia política porque as formas de censura e de controlo político se fazem de outros modos, dos modos em que a tecnologia age, à distância segura da relação presencial desnecessária e à velocidade da comunicação internética – do lado de lá temos agora sempre um “sem rosto”, uma plataforma informática bloqueada ou à espera de um analfabeto funcional para lhe pregar uma multa, um conjunto de dispositivos de operacionalidade inter-humana que nunca são nem claros, nem racionais, muito menos partilhados com os “utilizadores”. É por aí que a ditadura paulatinamente se enraíza e também pela ausência de um parlamentarismo de qualidade, o que não nos ajuda a voar e fazer voar o país para melhores dias. Também nesse lugar que a tradição política diz nobre não se faz luzir uma alternativa e uma nova esperança. E esse autoritarismo austeritário tem destruído o estado social, quer reduzi-lo à questão securitária – aparelho de repressão, vejam-se os coletes à prova de bala – e uns arremedos de “social” para Europa ver. Na realidade estão aí os arcaísmos da vida salazarenta: caridadezinha no lugar de solidariedade institucional, mendicidade, emigração estimulada, aparelho cultural esvaziado, museus, escola a caminho dos ofícios menores para os novos excluídos que são “ajudados a desistir” de outros caminhos, elitização da universidade por um lado e por outro a sua vulgarização – como no tempo dos liceus, da universidade e das escolas técnicas e comerciais que conhecemos e que dividiam os portugueses em castas. E tudo piora em todos os aspectos na “vida nova” que convivemos com outros no nosso dia-a-dia, que não é o deles, dia-a-dia, como sabemos, como se eles seguissem à letra o provérbio quanto pior melhor, esse esquerdismo direitista. Quem sai da crise de facto? O financismo, que a provoca, com novas acumulações ilegítimas de dinheiros?
Quem de facto sai também da crise são os suicidas que decidem partir de quatro em quatro horas de uma vida que se suporta cada vez menos. Ora precisamos de uma nova revolução, com outro tipo de cravos.

fernando mora ramos

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Leio um suicídio em cada quatro horas, numa notícia no Público e penso no discurso de Passos Coelho, no modo como o correu, lançado um minuto antes do anúncio feito, às 19 horas e 19 minutos, os olhos enfiados algures e no fim, lido, saída precipitada por não poder fazê-la à francesa – será que fazer a coisa assim coincide com a autoficção que faz de dizer a verdade de modo frontal e de ser ele o protagonista da má nova? Um discurso cujo gesto foi o de passar entre os pingos da chuva – não falou do essencial, o falhanço da meta do défice – dito de modo ultra rápido para não estar com quem o ouvisse, não ser claro o seguimento do que disse e sem frontalidade gestual, aquele olhar que uma postura de verdade obriga, olhos nos olhos com o conjunto dos portugueses, não são uma audiência assim como o discurso não seria um monólogo exterior, dito para dentro mesmo que sem matéria subjectiva. Mas foi. E o gesto diz tudo: o Primeiro-ministro gostaria de ter proferido outro discurso, o discurso que inauguraria um novo ciclo – que vendia. O ciclo decorrente de terem atingido a meta do défice, os tais 4,5%. E estive a ouvi-lo, coisa que sempre faço depois mais do que no momento – desconfio de imediatismos, não ajudam a razão – vendo o discurso que não proferiu neste que proferiu. Tenho por experiência profissional um grande treino de descodificação do gesto, no sentido amplo, o gesto social e não a gesticulação, e o que vi foi uma espécie de raid verbal, como se o Primeiro-ministro tivesse pensado: não posso inaugurar o ciclo da saída da crise, só posso vender mais do mesmo, um acrescento de austeridade à austeridade que nada trouxe: um desastre, na circunspecção séria do olhar caído. A tal má nova estava ali no gesto, que diz o que quer.

Volto ao suicídio de quatro em quatro horas e vem-me a estranha imagem de que é este o sinal mais claro da crise, que é esta “a estatística” mais objectiva do que se passa, que não são os 17% de desempregados nem a derrapagem no défice, gravíssimos dados, mas sim este horário da renúncia à vida, à nossa vida, ao tipo de vida que agora se vive. Na realidade sente-se um enorme mal-estar no país e todos sabemos que isso não se deve a uma clareza de propósitos para a saída da crise de que comungassem a maioria dos portugueses, deve-se ao contrário, à distância abismal entre governados e governantes. Todos sentimos um ambiente de fraude, de política como manipulação, nenhum de nós espera a verdade na boca do Primeiro-ministro, todos tentamos pescar na mentira prevista a verdade dos factos que virão, e que se centra claramente numa regressão do país, na pobreza e na exclusão do consumo de muitos portugueses, no desemprego, mas fundamentalmente num tipo de ambiente, generalizadamente crispado, desistente e em que o medo, também do futuro, faz de novo lei.

O que vivemos deve-se a um novo tipo de autoritarismo, que se forma no austeritarismo e nos modos da sua imposição, um autoritarismo que não necessita de institucionalizar a polícia política porque as formas de censura e de controlo político se fazem de outros modos, dos modos em que a tecnologia age, à distância segura da relação presencial desnecessária e à velocidade da comunicação internética – do lado de lá temos agora sempre um “sem rosto”, uma plataforma informática bloqueada ou à espera de um analfabeto funcional para lhe pregar uma multa, um conjunto de dispositivos de operacionalidade inter-humana que nunca são nem claros, nem racionais, muito menos partilhados com os “utilizadores”. É por aí que a ditadura paulatinamente se enraíza e também pela ausência de um parlamentarismo de qualidade, o que não nos ajuda a voar e fazer voar o país para melhores dias. Também nesse lugar que a tradição política diz nobre não se faz luzir uma alternativa e uma nova esperança. E esse autoritarismo austeritário tem destruído o estado social, quer reduzi-lo à questão securitária – aparelho de repressão, vejam-se os coletes à prova de bala – e uns arremedos de “social” para Europa ver. Na realidade estão aí os arcaísmos da vida salazarenta: caridadezinha no lugar de solidariedade institucional, mendicidade, emigração estimulada, aparelho cultural esvaziado, museus, escola a caminho dos ofícios menores para os novos excluídos que são “ajudados a desistir” de outros caminhos, elitização da universidade por um lado e por outro a sua vulgarização – como no tempo dos liceus, da universidade e das escolas técnicas e comerciais que conhecemos e que dividiam os portugueses em castas. E tudo piora em todos os aspectos na “vida nova” que convivemos com outros no nosso dia-a-dia, que não é o deles, dia-a-dia, como sabemos, como se eles seguissem à letra o provérbio quanto pior melhor, esse esquerdismo direitista. Quem sai da crise de facto? O financismo, que a provoca, com novas acumulações ilegítimas de dinheiros?

Quem de facto sai também da crise são os suicidas que decidem partir de quatro em quatro horas de uma vida que se suporta cada vez menos. Ora precisamos de uma nova revolução, com outro tipo de cravos.

fernando mora ramos

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